I
DA RAZÃO
DE ESTADO AO ESTADO-RAZÃO
Causalidade adequada
1. Como Espinosa, começaremos por dizer que há quatro
modos ou graus de conhecimento: por ouvir dizer, por experiência, por
causalidade inadequada e por causalidade adequada. Tentemos seguir este último,
através da técnica clássica do pensamento problemático, reelaborado pelas
escolas neokantianas da compreensão.
Protesto contra o positivismo
1.1. Ouçamos o conselho de René Le Senne (1882‑1954),
quando este refere que "a filosofia deve ser o protesto comum do espírito
contra o positivismo", dado que "a poesia, o sistema de Espinosa, a
dialética do argumento ontológico, um
pôr do sol, a cólera, a vida de S. João da Cruz, a vadiagem, também são,
indiscutivelmente, experiência, tanto quanto uma medida tirada no
catéter".
Lê-se mais do que se pensa
1.2. Recordemos a lição de Camus, para quem "os
antigos filósofos (naturalmente) pensavam muito mais do que liam. Eis porque se
agarravam tão tenazmente ao concreto. A imprensa modificou as coisas. Lê‑se
mais do que se pensa. Não temos hoje filosofias mas apenas comentários. É o que
diz Gilson ao afirmar que à idade dos filósofos que se ocupavam de filosofia
sucedeu a idade dos professores de filosofia que se ocupam de filósofos".
Contra o poder ilimitado
1.3. Comecemos por uma ideia simples: o poder ilimitado
do individualismo é exatamente o mesmo do que o do absolutismo, entendido como
"o Poder que, totalizando os direitos individuais, é inteiramente
livre".
Os vícios do individualismo e do absolutismo
1.4. Donde pode concluir‑se que o individualismo não tem
condições, por sua própria natureza, para travar o absolutismo. Porque são duas
materialidades da mesma natureza.
A necessidade de metapolítica
1.5. O poder só consegue ser travado quando se abdica de
uma conceção de poder ab‑solutus tornando‑o dependente de algo de metapolítico.
Defesa do Estado de direito
1.6. Integremos esta perspetiva na atual defensora do
Estado de Direito como o exato contrário do absolutismo. Porque o despotismo
implica uma relação de senhor/escravo, contrária à lógica do aparecimento do
Estado e à ideia de soberania.
Contra o despotismo
1.7. O despotismo é "astenia do político, anemia do
jurídico, ausência de deliberação". No despotismo "o poder é tudo e a política não é
nada, o comando é absoluto e a lei desvanece‑se" pelo que a opressão se
torna "implacável e a administração ineficaz". 1.7.1. Nele, "o público é rebatido pelo privado e o político prostra‑se no doméstico. Os litígios públicos e os debates coletivos são substituídos pelas intrigas palacianas e pelas querelas familiares".
1.7.2. Ora, o Estado, a Soberania e o Direito constituem os
fundamentos da liberdade pelo que todos os que têm como programa a supressão do
Estado tendem a favorecer o aparecimento de formas ofensivas da própria
dignidade humana.
1.7.3. Porque, se passarmos da razão de Estado ao Estado-Razão,
quanto mais Estado mais liberdade.
1.7.4. Porque o Estado não é o Leviathan mas o Libertador, aquele que encaminha o poder pela via
direita. Porque o poder não estatizável, isto é, não dependente do controlo do
direito, tende a fragmentar‑se e a transformar‑se na pura força.
1.7.5. E o Estado de Direito foi marcado pela ideia de um poder que foi capaz de construir uma civilidade
política, instituída, não sobre a guerra e o direito à conquista, mas sobre a
justiça e a negociação jurídica.
1.7.6. Um Estado de Direito que teve em Espinosa, Bodin, Hobbes
e Locke um modelo fundado no direito natural e nas referências bíblicas ao
Estado dos Hebreus, a "uma
sociedade de paz estabelecida por um contrato ‑ em vez de uma sociedade
constituída pela guerra ‑ segundo o
modelo do pacto bíblico estabelecido entre Deus e Abraão e , depois, entre Deus
e Moisés"
1.7.7. Porque o Estado de Direito nasceu em rutura com o
Império e o regime senhorial, como organização de um espaço público unificado
onde o poder público foi sujeito à lei e limitado pelos direitos individuais.
Pelo idealismo da realidade
1.7.8. Tentando assumir uma postura
próxima do modelo aristotélico no tratamento da política, julgamos que importa
escapar tanto ao mero idealismo, à maneira dos platonismos, como aos antídotos
pretensamente realistas, praticados pelos sucessivos maquiavelismos.
Entre a filosofia e o marketing
1.7.9. Entre os extremos de uma
política elevada à categoria de realização
da filosofia entre os homens, por um lado, e de uma redução ou rebaixamento
da mesma, como simples técnica, habilidade, manha ou marketing, por outro, talvez exista o vasto campo do
experimentalismo e do relativismo.
1.7.10. Talvez seja possível a autonomia
da política a partir da observação dos factos, bem como uma ciência política
que não tenha pejo em assumir-se como ciência prática, preocupando-se
exclusivamente com os homens, esses seres que são fonte de ação.
1.7.11. Talvez seja possível uma ciência
cujo fim não se limite a mera especulação, visando também uma sabedoria
prática, aquilo que os gregos chamavam phronesis, e a que os romanos vão dar o nome de prudentia, a ponderação razoável sobre o
agir, o apelo à autonomia da consciência, a razão que se interroga sobre o bem
e o mal.
1.7.12. Uma ciência que, tentando
descrever claramente os fenómenos da ação humana, tanto pelo exame dialético
das opiniões dos homens como pelo comparativismo, não deixa de ser ciência
quando visa melhorar a ação.
1.7.13. Talvez haja uma terceira via de
relativismo e de experimentalismo que, na senda de Aristóteles, admita uma natureza das coisas, considerando que
cada coisa existente possui, dentro de si, uma virtude, um poder constituinte,
uma natureza que tende a realizar-se em ato, visando satisfazer a exigência de
harmonia e de completude que o ser exige.
1.7.14. Nesta senda, diremos que não há
campos demarcados para o bem e para o mal, que não há coisas exclusivamente
boas nem coisas exclusivamente más. Porque tal como as coisas más possuem uma
certa parcela de bem, também as coisas boas não podem deixar de ter uma certa
imperfeição.
1.7.15. Deste modo, pode contrariar-se a
fase inicial de todos os pensamentos antropológicos que, no seu protesto contra
os exageros totalistas dos anteriores objetivismos cosmológicos, acabam no
pessimismo de considerar as comunidades políticas, como um produto do artifício,
e a justiça, como mera conveniência dos mais fortes.
2. Felizmente que, depois de todos
os sofismos e maquiavelismos, aparece sempre o movimento que corrige o anterior
excesso de ceticismo. Depois dos que proclamam o homem como medida de todas as coisas numa perspetiva
de chicana pessimista, surgem sempre os céticos
entusiastas que, no fundo da angústia, detetam a hipótese de uma sociologia
da esperança.
2.2. O relativismo, com efeito,
acontece sempre depois de nos fatigarmos de um anterior exagero transcendentalista,
onde a luz, o esplendor, a felicidade, e o bem são como aquele sol que não
podemos olhar de frente.
2.3. Quando ficamos fartos do excesso
de uma doutrina incompleta, acaba por apetecer o bom senso de uma conceção do
mundo e da vida mais moderada, que admita o bem, mas não imponha o desespero de
uma ideia sem lugar e sem tempo, sita numa qualquer utopia ou ucronia.
2.4. Para quê separar a ideia da
coisa? A ideia só se constitui na intimidade da nossa consciência, a partir
daquela raiz que sustenta a dignidade e a autonomia de cada homem concreto, de
cada um de nós entendido como o real centro do mundo.
2.5. Vamos, portanto, tentar ver as
coisas por dentro, procurar descobrir o princípio
gerador das comunidades políticas, a ideia
de obra ou de empresa que permite realizar radicadamente, enraizadamente, a
natureza das coisas.
2.6. Para quê tentar estabelecer
relações imediatas com um céu que nos supera e do qual apenas podemos ter imagens ou aparições? O bem de cada coisa não pode ser destacado da própria
coisa. Porque não há um bem absoluto, ab+solto,
não há um bem solto da coisa. A essência só se realiza através da existência.
2.7. Não vale a pena cair no
desespero de ter que definir tudo aquilo que apreendemos e compreendemos.
Talvez seja conveniente admitir que há sempre uma zona de mistério em todo este
processo de descoberta da verdade e de procura da inteligibilidade do real.
Porque há sempre um momento em que o racional comunica com o transracional,
nomeadamente com o mítico.
2.8. O bem talvez não seja uma ideia separada da matéria, algo que
paire por cima de nós, no céu das
essências e dos paradigmas. O bem está à nossa espera nas próprias coisas da
vida, nas nossas circunstâncias, na família, no comércio, na polis. Só por dentro das coisas é que as
coisas realmente são...
2.9. Vamos pois aos factos. Vamos
descrever as cidades que existem e os poderes concretos que as conformam. Vamos
descer ao que está posto na cidade. Talvez assim melhor possa descobrir-se o
bem.
2.10. A única verdade que existe é a
que está ligada à matéria. Foi assim o aristotelismo. São assim todos os
aristotelismos que só podem acontecer depois dos platonismos. E haverá sempre
aristotelismos, sucedendo a platonismos, porque os aristotelismos completam os
platonismos. Como no célebre quadro de Rafael sobre A Escola de Atenas, onde Platão aponta o dedo para o céu e
Aristóteles se volta para a terra.
2.11. Quando o excesso de realismo
atinge os extremos do pessimismo antropológico, procura-se sempre a correção da
esperança. Depois dos excessos de Maquiavel e de Hobbes, tem de acontecer um
Espinosa, com o idealismo da realidade.
2.12. O transcendente só se constitui
quando se dá a simbiose entre um elemento racional e os factos sociais. A
racionalidade, porque é complexa, tem de ser iluminada pelas categorias do espaço
e do tempo. Se, como dizia Montesquieu, há relações
necessárias que derivam da natureza das coisas, se há leis, elas não devem ser senão os casos particulares
onde se aplica a razão humana
2.13. Com
a este respeito, observa Espinosa, a
obediência não se refere tanto à ação externa quanto à ação anímica interna.
Donde resulta que quem está mais submetido a outro, é quem decide com toda a
sua alma obedecer-lhe em todos os seus preceitos; assim, quem tem a máxima
autoridade, é quem reina sobre os corações dos súbditos (Tratado Teológico-Político,
trad. cast. de Atilano Domínguez,
Madrid, Alianza Editorial, 1986, XVII, 20, p. 352)
III. ESPINOSA E A NOVA JERUSALÉM
3. Bento Espinosa é o pensador
da encruzilhada, onde surge um primeiros pensamentos integralmente democráticos
dos tempos modernos, considerando-se a ideia de liberdade como fim da
república, delineando-se o princípio da separação de poderes, defendendo-se a
estrutura federativa do Estado e chegando-se até à consideração da comunidade
internacional como efeito de um contrato social internacional.
3.1. Bento Espinosa (1632-1677),
nasce na Holanda, no seio de uma família de judeus portugueses, ao que parece
oriundos da Vidigueira, tendo o português como língua maternal e na qual também
faz a primeira escolaridade.
3.2. A sua vida é marcada pela
solidão e por um sentimento e exílio. A mãe, Hannah Debora, morre quando o
jovem Bento tem seis anos e de idade; seguem-se as mortes do irmão Isaac
(1649), da irmã Miriam (1651), da madrasta Ester (1653) e do próprio pai,
Micael (1654).
3.3. Em 1670 publica em latim um
Tractatus Theologico-Politicus, sem
indicação de autor, onde, no plano teológico, defende a liberdade de
interpretação das Escrituras, e no plano político, a liberdade de expressão. Em
1675 publica a Ethica ordine geometrico
demonstrata. Já depois da sua morte aparece um Tractatus Politicus, que redigiu a partir de 1675, mas que ficou
incompleto, dado que não chegou a ser escrito o desenvolvimento da teoria o
governo democrático.
3.4. Originário de uma família
condenada ao exílio pela intolerância do catolicismo oficial, Espinosa vai
também sofrer as consequências das ortodoxias e das teocracias de judeus e
calvinistas. Depois de em 1656 ter sido excomungado pela comunidade judaica e
de ter sido hostilizado pelos calvinistas, sai da cidade natal e instala-se m
Rijnsburg, nos arredores de Leyden, a partir de 1660. Três anos depois, muda-se
para Voorburg, nos arredores de Haia. Vai vivendo da sua atividade de polidor
de lentes e, a propósito, carteia-se com Leibniz. Recusa uma cátedra de
filosofia em Heidelberg.
3.5. Espinosa, se, em nome o
humanismo laico, se opõe à teocracia de católicos, protestantes e judeus, se
aceita o método realista de Maquiavel, se parte da análise das coisas como elas
são, não adota, contudo, aquele pessimismo antropológico que acaba por defender
a inevitabilidade da ditadura e da guerra.
3.6. Marcado por um panteísmo à
maneira dos estoicos, considera que Deus
é uma substância que se identifica
com a natureza e entende os corpos e
os espíritos como uma natura naturata,
como meros aspetos da natura naturans
de Deus ou da natureza, com a consequente perspetiva do homem como modo ou aspeto
da substância, onde a alma é o modo do pensamento e o corpo, o modo da extensão (II, 10) pelo que a
alma e o corpo se não relacionariam como duas substâncias, mas antes como uma
relação entre a ideia e o seu objeto, onde o corpo é o primeiro objeto
da alma e a alma é a ideia do corpo[1]
(II, 13 e 21)
3.7. O corpo é assim entendido
como a proporção ou a harmonia entre o movimento e o repouso, estando
constantemente submetido ao impacto dos múltiplos e variados corpos que o
rodeiam. Daí conceber o homem como um ser
imaginativo, como aquele ser que só tem conhecimento dos corpos externos
através da imaginação, entendida como
um conhecimento condicionado pela situação do corpo, do temperamento, da
experiência prévia e dos próprios preconceitos (II, 17-19).
3.8. O humanismo laico e não
absolutista de Espinosa, opondo-se à teocracia de protestantes, católicos e
judeus, vai estruturar a primeira teoria democrática moderna. Primeiro, quando
deixa de considerar a liberdade como mero atributo de uma minoria de cidadãos,
fazendo-a radicar na universalidade humana, na multitudo. Segundo, quando perspetiva a mesma democracia de forma
realista, entendendo-a como uma conjugação do poder e da liberdade e
retirando-a dos domínios da utopia, quando aceita que o homens são iguais do
ponto de vista do direito, mas desiguais do ponto de vista do poder.
3.9. Se aceita o método realista
de Maquiavel, não adota o pessimismo antropológico do florentino, rejeitando a
inevitabilidade da ditadura e da guerra. Se adota a perspetiva hobbesiana do
estado de natureza e considera o Estado como um poder supremo, não deixa de
defender, de forma consequente, a liberdade.
Ter razão antes do tempo
3.10. Contudo, Espinosa, tendo razão
antes do tempo, acaba por não influenciar as correntes de pensamento do seu
tempo. Valeu-lhe a circunstância de Rousseau o ter lido em profundidade,
tomando-lhe conceitos como o de civitas, cidadania, liberdade como
vida debaixo da razão e democracia como governo de todos, com obediência a si
mesmo.
Estado de natureza, o que vem antes
da ordem moral
4. No estado de natureza (status
naturae), no estado anterior à formação das sociedades organizadas e da
ordem moral, teríamos um homem sem responsabilidade perante qualquer
lei, sem saber do justo e do injusto e sem poder distinguir a força do
direito, um homem ainda submetido às paixões, vivendo num estado de
insegurança, onde o direito se confunde com o poder, onde cada um goza
de tanto direito como o poder que possui (Tractatus Politicus,
II, 8, , trad. cast. de Atilano Domínguez, Madrid, Alianza Editorial, 1986), um
homem que, como Deus, tem direito a tudo e o direito de Deus não é
outra coisa senão o seu próprio poder enquanto absolutamente livre, segue-se
que cada coisa natural tem por natureza tanto direito como o poder, para
existir e atuar (II, 3), onde o direito natural de toda a
natureza e, por isso mesmo, de cada indivíduo, estende-se até onde chega o seu
poder (II, 4)
Onde os peixes grandes devoram os
peixes pequenos
5. Se nesse estado de natureza os
homens atuam pelo instinto universal de conservação, relacionando-se uns com os
outros, tal como os peixes grandes devoram os peixes pequenos, segundo a lei de
destruição do mais débil pelo mais forte, já na associação, no status
civilis, nasce a simpatia de uns pelos outros e o sentimento de humanidade,
esse esforço de racionalidade que pretende superar o regime das paixões.
Estado civil ou estado político
6. A passagem do estado de natureza
para o status civilis ou estado político aconteceria
através de um contrato, pelo qual os homens se comprometem a ser governados
pela razão.
O medo à solidão
7. Mas vários elementos do
pensamento de Espinosa o distanciam de Hobbes. Em primeiro lugar a ideia de
que os homens tendem por natureza para o estado político e
que é impossível que o destruam totalmente alguma vez, porque o medo à
solidão é inato em todos os homens e o solitário não tem
forças para defender-se nem para procurar os meios necessários à vida (VI,
1, 122)
Defesa da paz e da esperança
8. Em segundo lugar, a defesa da paz
e da esperança: uma multidão livre guia-se mais pela esperança do que
pelo medo, enquanto a que está subjugada se guia mais pelo medo do que pela
esperança. Aquela, com efeito, procura cultivar a vida, esta, pelo contrário,
evitar simplesmente a morte; aquela, repito. Procura viver para si, enquanto
esta é, por efeito da força, do vencedor. Por isso dizemos que a segunda é
escrava e que a primeira é livre (VI, 120).
Esfera pessoal intangível
9. Finalmente, a consideração de que
no status civilis se conserva uma esfera pessoal intangível,
que o próprio Estado tem interesse em manter: o poder supremo num
Estado não tem mais poder sobre um súbdito que em proporção ao poder pelo qual
é superior ao súbdito, e isto é o que ocorre sempre no estado de natureza.
O contrato como elemento fundacional
9. O modelo de organização do
político proposto por Espinosa parte de uma leitura política que faz dos factos
históricos narrados no Antigo Testamento, propondo uma
recuperação do Estado dos hebreus, onde o momento fundacional é um contrato donde
deriva uma aliança comandada pela lei: cada um dos hebreus não
transferiu o seu direito para nenhuma pessoa em particular, mas todos, à
maneira dos membros de uma democracia, fizeram igual esse direito.
A dimensão moral do Estado razão
10. Só que o pacto não tem apenas
uma dimensão legal, aquela que cria o Leviatão da força estatal,
dado também possuir uma dimensão moral, quando pretende subordinar a paixão à
razão, surgindo o modelo do Estado-razão, onde todos têm de viver
segundo o ditame da razão (VI, 123)
A espada ao serviço da palavra
11. O poder político aparece assim
como a antirrazão ao serviço da razão, como a força ao serviço da
ideia, como a espada ao serviço da palavra. Se,
por um lado, o Estado é cessão de direitos e união de forças e, portanto, poder
absoluto ou supremo poder, por outro lado, não deixa de ser poder coletivo e
democrático: pode formar-se uma sociedade e conseguir-se que todo o pacto
seja sempre observado com a máxima fidelidade, sem que ele contradiga o direito
natural, com a condição que cada um transfira para a sociedade todo o direito
que possua, de maneira que ela só mantenha o supremo direito da natureza a
tudo, isto é, o poder supremos, a que todo o mundo tem que obedecer, seja por
iniciativa própria, seja por medo do máximo suplício (Tractatus
Theologico-Politicus, trad. cast. de Atilano Domínguez, Madrid, Alianza
Editorial, 1986
Estado como aliança
12. E aí temos o Estado perspetivado
mais como aliança do que como conjunto unificado, uma memória do dualismo das
tribos israelitas, onde, de um lado, estavam os poetas e, do outro, os
soldados.
Separação, mas não confusão entre a
religião e a política
13. Contudo, Espinosa, se proclama a
necessidade de separação entre o poder civil e o religioso, ao contrário de
Hobbes, também considera que o Estado, como poder supremo, deve controlar os
assuntos religiosos e permitir a tolerância e a liberdade de expressão. Isto é,
Espinosa defende uma aliança, mas não uma confusão entre coisas divinas e as
coisas do poder, à semelhança da moisaica.
Contrato social internacional
14. No plano das relações
internacionais, propõe o estabelecimento de um modelo de segurança coletiva
mediante um contrato social internacional, um tratado conjunto de paz, pelo
qual, seria menor a liberdade de cada um dos Estados contratantes, dado que
todos estariam ficariam obrigados a respeitar a vontade geral.
Liberdade de consciência
15. Como saliente Blandine Kriegel, "Espinosa
não separa o entendimento da vontade. O espinosismo não é um racionalismo. A liberdade
de consciência é superior à competência". Bento Espinosa considera que
"todo o ser se esforça , enquanto é em si, por persistir em seu próprio
ser; e o esforço pelo qual uma coisa procura persistir em seu próprio ser nada
mais é que a essência real dessa coisa", é o esforço de autoconservação.
Substância una e infinita que é
causa de si mesma
16. O núcleo fundamental do
pensamento do célebre judeu holandês de ascendência portuguesa, parte da
consideração que existe uma substância una e infinita que é causa de si mesma,
chame‑se‑lhe "Deus" ou "Natureza". É a substância de
todas as coisas, o que há de permanente em todas as coisas e não algo de
pessoal, distinto das coisas.
Um ser imaginativo e passional
17. Para ele existiu uma ordem,
um status naturae, anterior à
formação das sociedades organizadas, e, só depois, uma ordem moral. Ora, no
estado natural o homem, "sem responsabilidade perante nenhuma lei",
não sabe o que é o justo e o injusto e não distingue a força do direito. É o
homem como um ser imaginativo e passional que, apesar de não ser um
simples animal, está submetido às paixões.
É da associação que nasce a simpatia
18. Com efeito, para Espinosa, o
homem não é bom por natureza e é da associação que nasce a simpatia, sentimento
de raça e por fim sentimento de humanidade. Isto é, para viverem "seguros
e o melhor possível, os homens tiveram que unir necessariamente os seus
esforços." (TTP, XXI, pp. 191 ss.)
Contrato, o governo pela razão
19. O contrato em Espinosa, mais do
que uma rutura é uma realização, correspondendo à decisão dos homens preferirem
ser governados pela razão, em vez de o serem pelos preconceitos teológicos das
teorias do direito divino dos reis que são o fruto da imaginação e da
superstição. Neste sentido, a constituição da sociedade é simples episódio do
grande todo cósmico, onde os homens pelo consenso estabelecem o império, unindo‑se,
deste modo, à ordem comum da natureza.
Diálogo hermenêutico com o texto
bíblico
20. De referir que toda a teoria
política de Espinosa parte de um diálogo hermenêutico com o texto bíblico,
circunstância que o levou mesmo a ser expulso da própria comunidade hebraica. A
respetiva conceção de Estado nasce, aliás, de uma análise daquilo que
considerava as vantagens do Estado dos Hebreus.
A ideia de pacto, ou aliança
21. A primeira, a existência de um
pacto, ou de uma aliança, no seu momento fundacional, um contrato onde ocorreu
uma aliança comandada por uma lei, dado que "cada um dos hebreus não
transferiu o seu direito para nenhuma pessoa em particular, mas todos, à
maneira dos membros de uma democracia, esse direito fizeram igual".
Separação de poderes
22. Em segundo lugar o Estado dos
Hebreus optou por uma separação de poderes entre poetas e soldados, entregando
o poder de interpretar as leis a uma tribo e o poder militar a outra.
Federalismo
23. Em terceiro lugar o Estado em
causa assumiu uma estrutura federativa, mais "como Estado aliado do que
como um conjunto nacional unificado", próximo "dos estados da União
nos países holandeses".
Aliança moisaica entre Deus e o
poder
24. Em último lugar, Moisés não
fundou um poder divinizado, separou a divindade do poder, fez uma aliança entre
Deus e o poder, não os confundindo. Os hebreus "resolveram sair do estado
natural em que se encontravam e transferiram todo o seu direito não para uma
autoridade mortal qualquer, mas apenas para Deus" (Blandine Kriegel, Spinoza et la doctrine de la liberté
publique,in Les chemins de l'État, pp. 267‑288, bem como Judaisme et État de Droit,in Colloque
des Intellectuels Juifs. La Question de l'État, pp. 15‑23 )
Defesa da democracia
25. Saliente‑se que Espinosa é, no
século XVIII, um dos raros partidários ostensivos da democracia: "se para
proceder à minha exposição a preferi aos outros regimes é porque o considero o
mais suscetível de respeitar a liberdade natural dos indivíduos". Se
sublinha, como Hobbes, que o poder é sempre direito, que "cada um goza de
tanto direito quanto o poder que possui" (TP, II, 8) também refere que o
poder do todo limita o do indivíduo. Daí concluir que o Estado deve limitar o
poder dos cidadãos apenas para evitar a mútua destruição.
O poder e o direito identificam-se
26. Com efeito, Espinosa considera
que o poder e o direito se identificam. Para ele "como Deus tem direito a
tudo e o direito de Deus não é outra coisa senão o seu próprio poder enquanto
absolutamente livre, segue‑se que cada coisa natural tem por natureza tanto
direito como poder para existir e para atuar" (TP, II, 3).
O poder limitado
27. O direito é reduzido ao poder,
"o direito natural de toda a natureza e, por isso mesmo, de cada
indivíduo, estende‑se até onde chega o seu poder" (TP II, 4), mas o poder
do homem não é ilimitado. Está limitado pelo que o rodeia, principalmente pelo
poder dos demais homens. Ora, "esse direito que se define pelo poder
da multidão costuma denominar‑se Estado" (TP II, 17), enquanto que "o
corpo íntegro do Estado denomina‑se sociedade"
O Estado como liberdade e poder
absoluto
28. Nestes termos vê o Estado como
liberdade e poder absoluto, simultaneamente. Liberdade, enquanto regulador da
vida racional; poder absoluto enquanto absorve os direitos dos indivíduos.
Norma comum de vida
29. Na Etica refere expressamente que o Estado é uma sociedade que
"reclama para si o direito que cada um tem de tomar vingança e de
julgar acerca do bem e do mal e que tem, portanto, o poder de prescrever uma
norma comum de vida e de ditar leis e de respaldá‑las, não com razão, que não
pode reprimir os afetos, mas com ameaças" (IV, 37).
O homem como limite do Estado
30. É que se o indivíduo cedeu tudo
ao Estado, mas este não pode exigir‑lhe que deixe de ser homem, ao contrário de
Hobbes que considerem não existirem limites para a ação do Estado, que cesse de
viver humana e racionalmente. Porque "o homem que se guia pela razão é
mais livre na sociedade, onde vive conforme uma lei geral, que na solidão, onde
obedece a si mesmo" (IV, 73).
Libertar os homens do terror
31. O fim do Estado é libertar os
homens do "terror para que possam viver e agir em plena segurança e sem
perigo para si e para o seu vizinho. O fim do Estado não é transformar seres
racionais em brutos ou máquinas. É habilitar o corpo e o espírito dos cidadãos
a um funcionamento normal. É levar os homens a viver exercendo livremente a sua
razão para que não desperdicem a força em ódios e fraudes, nem se conduzam
deslealmente. Assim, o verdadeiro fim do estado é a liberdade".
Panteísmo, realidade e perfeição são
a mesma coisa
32. O seu panteísmo leva‑o aliás a
considerar que "realidade e perfeição são a mesma coisa", mas que o
bem e o mal não existem na natureza , não tem qualquer essência, não são entia realis, mas sim entia rationis (Ética III, 6).
IV
A unidade na diversidade
Da diferença, para o universal
33. A partir desta síntese estoica,
greco-romana, a polis passou a conceber-se como algo que parte
do particularismo, da diversidade e da diferença para atingir o universal.
Para a descoberta do infinito pela atenção ao finito (J.
Hirschberger), para a noção de que o universal é o local menos os muros,
conforme as palavras de Miguel Torga.
O uno e o diverso
34. A partir de então, conforma-se a
essência do projeto europeu e ocidental de político, esse processo de resolver
a oposição entre o uno e o diverso, de maneira
diferente de certa metafísica oriental que logo trata de suprimir o segundo dos
termos, através de uma ascese que apaga a diferença e o próprio indivíduo, a
fim de fundar o uno sem distinção, como nos ensina Denis de Rougemont.
A tensão criadora
35. A partir de então, o pensamento
clássico do político tratou de assumir que devem manter-se os dois termos da
oposição, não em equilíbrio neutro, mas através de uma tensão criadora, daquela
mesma que falava Heraclito: o que se opõe, coopera, e da luta dos
contrários deriva a mais bela harmonia.
A transcendência, pela imanência
36. Porque só pode atingir-se a
transcendência pela imanência. Porque todo o transcendente só pode ser um
transcendente situado. Porque toda a essência só pode realizar-se através da
existência. É o tal existencialismo que não é anti-essencialista e o tal
laicismo que não é deicida.
O fim da poliarquia republicana
37. Saliente-se, contudo, que a
poliarquia da república romana vai, depois, ser expropriada pelo princeps,
acabando por ser esmagada pelo peso do Imperium, primeiro, quando, com
Diocleciano, o Imperator se assume como dominus e deus e,
depois, quando, com Constantino, a cidade-Estado volta a
ser cidade-Igreja. Quando deixa de haver separação entre o que
era de César e o que era de Deus e a autonomia da política passa a ser
absorvida pela moral religiosa, principalmente com o chamado agostinianismo.
O renascimento republicano,
pós-feudal e pós-imperial
38. Contudo, o modelo poliárquico,
de matriz aristotélica e estoica, vai renascer e é, desta semente, que emerge a
perspetiva medieval do reino e da cidade, as novidades
pós-feudais e pós-imperiais que emergem nos séculos XII e XIII e que têm em São
Tomás de Aquino o principal teórico.
Restauração da política
39. Dá-se, então, a restauração e a
cristianização da ideia de política, reagindo-se assim contra a expropriação
do político pelo império e da autonomia da
política pela moral religiosa, como acontecera durante a vigência do
constantinismo e do agostinianismo.
O pluralismo da unidade de relação
40. A polis voltou
a ser unidade de ordem e não unidade substancial, onde o todo deixou de
significar fusão das partes que o compõem num ser unidimensional, num totum continuum,
num simpliciter unum. A polis passou a ser vista
como mera essência relacional, como simples unidade de relação.
A unidade não é unicidade e o todo
não é totalitário
41. Por outras palavras,
consagrou-se a circunstância de não poder haver polis sem autonomia
dos cidadãos, a fonte do consentimento, a origem imediata de todo o poder
político. Porque a unidade engloba os cidadãos, mas sem os absorver, sem os
diluir, sem os totalitarizar. Porque a unidade não é unicidade, tal como o todo
não é o totalitário. A unidade é unidade na diversidade, diversidade de
funções, mas harmonia para um fim unitário, um bem comum mobilizante.
A política como estratégia
42. A polis é
apenas forma que se dá a uma determinada matéria:
os indivíduos, tornados pessoas. É mais um processo do que uma
coisa, é mais relação e estratégia do que objeto e coisificação.
Tomismo
43. É este o principal contributo de
São Tomás, quando vai falar na civitascomo a união estável
de um certo número de homens que colaboram em ordem a um fim, um fim que
identifica com o bem comum, entendido como a síntese da ordem e da
justiça.
Um todo de ordem
44. A civitas aparece
como uma perfecta communitas, como uma unidade autossuficiente,
como uma entidade suprema, dado englobar outras comunidades, como
as famílias e as aldeias, mas que apenas constitui uma unidade de ordem,
um totus ordinis, onde existe aquela gubernatioque
permite conduzir convenientemente o que é governado a um determinado
fim.
Unidade de fim
45. Pode, a partir de então,
proclamar-se que há uma diversidade de cidades resultante da diversidade de
fins e das maneiras diferentes que cada cidade tem de tender para o mesmo fim.
Isto é, podem escolher-se fins diferentes e até há maneiras diferentes de
tender-se para o mesmo fim.
Consensualismo
46. Estão assim criadas as bases que
hão de ser desenvolvidas por todo o posterior consensualismo, defensor da conceção
racional do político, onde hão de confluir tanto a neo-escolástica peninsular,
de cariz católico, com destaque para as teses de Francisco de Vitória e
Francisco Suarez, como certo pensamento protestante pós-teocrático, de Johannes
Althusius a John Locke.
Conceção racional do político
47. A polis é tão
só uma sociedade perfeita porque tem um fim perfeito. É uma entidade superior
que engloba várias entidades inferiores. Uma entidade perfeita que tanto pode
cingir entidades imperfeitas como várias entidades perfeitas.
A política como simbiótica
48. Porque a política é
sobretudo simbiótica, é aquilo que faz simbiose, que faz unidade na
diversidade. Como vai dizer Althusius é o que permite a comunicação
mútua daquilo que é necessário e útil para uso e consórcio da vida social.
Racionalidade ética
49. Não basta o que é comum aos animais,
o que faz com que haja rebanhos, importa a racionalidade técnica, dos que
procuram o bem- estar e a segurança. Mas essa racionalidade técnica, comum às
sociedades imperfeitas, como a casa e a empresa, não chega. Serve para os sócios resolverem
a questão do bonum utile, não chega para se atingir o bonum
honestum da racionalidade ética, só passível d ecidadania.
Consociação
50. Os homens, com efeito,
consociam-se de maneira diversa. De maneira simples ou privada, contratual ou
societária, onde há comutação. Mas também se consociam de maneira complexa,
mista ou pública, para constituírem comunidades perfeitas, norteadas pela
justiça global, pelo que à justiça comutativa tem de acrescentar-se tanto a
justiça distributiva como a justiça social.
Consociação universal, pública e maior
51. A forma complexa, mista ou pública
de consociação é aquela onde muitas consociações privadas ou simples se unem,
como salienta o mesmo Althusius, pelo direito de poder comunicar e
participar o útil e necessário para a vida do corpo constituído. Eis
a polis, a tal consociação universal, pública e maior,
continuando Althusius.
Corpo político
52. O tal corpus politicum
et mysticum que, segundo Suarez, resulta de um específico acto
de união para uma associação moral, a tal comunidade mística,
unida por um fim, uma comunidade politicamente organizada e não apenas uma
multidão inorgânica.
Vontade geral
53. A polis não é
apenas societas, pensada através de um omnes ut singuli,
referido por Francisco Suárez, ou pela vontade de todos de
Rousseau, onde cada um exprime a sua vontade pensando nos respectivos
interesses. A polis é algo de mais: é a vontade geral,
de Rousseau, onde cada um se exprime pensando nos interesses do todo, é
um omnes ut universi, conforme as palavras de Suarez.
Comum consentimento
54. Na polis há
uma especial vontade ou um comum consentimento para
se reunir um corpo político, para voltarmos a Francisco Suarez.
Surge assim uma polis, a sociedade de vida, constituída
mescla, em parte privada, natural, necessária, espontânea, em parte pública,
segundo as palavras de Althusius.
Contra o soberanismo absolutista
55. Não caem estas correntes nos
vícios soberanistas do absolutismo. Para eles, a polis é uma
sociedade perfeita, perfeita em relação a si mesma, por ser dotada de uma
autonomia intrínseca - por ter uma plenitude de direito e de poder, por possuir
um governo - e de uma autonomia extrínseca - e perfeita relativamente a
sociedades idênticas.
Povo,
sociedade, contrato
56. Polis é povo, societas e
contrato. É povo politicamente organizado, é comunidade e é instituição. É
sociedade organizada, dotada de um poder supremo, tendo um status
politicus ou civilis (uma estrutura política), umacivitas (um corpo
íntegro, um conjunto de indivíduos associados) e uma res publica (a
administração dos assuntos comuns da governação), como assinalava Espinosa. É,
como dizia Rousseau, acção do todo sobre o todo, o tal ser
comumfeito de uma multidão de seres razoáveis.
Estado-Razão
57. É, nas palavras de Aron, a
colectividade considerada como um todo. Ou, para subirmos à perspectiva de
Kant, um Estado-Razão, o talcontrato original pelo qual todos os
membros do povo limitam a sua liberdade exterior, em ordem a recebê-la de novo
como membros da comunidade, o povo olhado como universalidade. Onde a vontade
geral, o omnes ut universi, é a vontade do geral, a vontade do
universal.
Comunidade, autonomia e nação
58. Impõe-se, portanto, que
cada polis, segundo os termos do mesmo Kant, seja res
publica, potentia e gens, que seja, ao mesmo
tempo, comunidade, autonomia e nação, que seja associação de pessoas,
com poder, mas enraizada numa comunidade de gerações. Não basta o contrato, mas
não se exclui o contrato. Exige-se algo de mais: instituição, comunidade. Mas
sempre através do plebiscito de todos os dias, de que falava Renan,
um plebiscito praticado em torno das coisas que se amam.