Contra
algumas más interpretações retroativas do anticlericalismo e do laicismo
I
A construção de um modelo racional-normativo do político
O processo de reconstrução de um modelo racional-normativo de Estado no Portugal Contemporâneo foi sempre ensombrado por sucessivos conflitos entre a política e a religião, sem que se tenha conseguido a necessária aliança entre o humanismo laico, ou, melhor dito, de obediência maçónica, e o humanismo cristão, ou, mais diletamente dito, de apologética católica, quando bastaria recordar o sincretismo da própria restauração da Europa no século XIII, numa altura em que a autonomia das cidades e dos reinos beneficiou da cristianização dos clássicos do estoicismo, trazido pelos árabes, judeus e por Bizâncio, para o seio da nascente universidade, quando ela ainda era studium generale e universitas scientiarum, restauradora da academia de Platão ou do liceu de Aristóteles, com complexa ratio studiorum, na linha da que sonhou mestre Leonardo Coimbra e os seus discípulos da Renovação Democrática.
Para uma leitura pluralista e desinibida
Apesar de, no presente regime, se ter atingido algum grau de
consensualidade, mas quase clandestina, e com algumas fúrias proibicionistas
quanto a locais de comunhão de locais sagrados, mesmo em hora de tolerância
pela morte, falta ainda enfrentarmos, sem fantasmas congreganistas e sem
complexos anticongreganistas, uma leitura pluralista e desinibida, capaz de
compreender a pluralidade de pertenças de uma cidadania de homens livres, incluindo os que são livres dos partidos e da finança, (para citar a epígrafe da revista
portuguesa de 1925, fundada por Afonso Lopes Vieira e António Sérgio), onde uma
saudável relação entre os que se qualificam como povo de Deus e todos os que são povo
da república permita que, entre César e Deus, a nenhum deles pertença tudo,
evitando teocracias e cesaropapismos, com os consequentes totalitarismos e apartheids da cité
antique.
Laicismo
Sobre o laicismo, é
sabido que, etimologicamente, vem do grego laikos,
ou popular, onde a expressão portuguesa tem, aliás, como intermediário o
francês laicisme, sendo introduzida
na nossa língua apenas no século XIX. Trata-se da doutrina que defende a
independência da sociedade e do Estado face à influência religiosa ou
eclesiástica, sendo marcante no início do século XX, principalmente a partir da
experiência da III República Francesa, depois do affaire Dreyfus de más
memórias pelas consequências de intolerâncias de muitos lados que deviam ser
aliados, para serem fiéis à casa comum da civilização europeia e mediterrânica,
onde os homens da meia noite furaram
a suavidade dos homens do luminoso meio-dia,
para glosar Camus.
Secularismo
Equivale ao movimento britânico do secularismo. Tem as suas
origens na reação contra a doutrina das duas espadas assumida pelo papa
Bonifácio VII na bula Unam Sanctam de 1302, luta assumida por
autores como Marsílio de Pádua e Guilherme de Ockham. Desenvolve-se com o
Renascimento, desde as novas concepções políticas de Maquiavel às perspectivas
de ciência assumidas por Galileu, mas que foi amplamente assumida pelos nossos
repúblicos, da estirpe erasmista de um Damião de Góis ou do escotismo de Luís
de Camões, eternos mestres do universalismo
lusíada e da arte de ser português.
Religião da humanidade
Isto é, não pode reduzir-se à variante, marcada pelas teses de
Saint-Simon e Comte, que teve tendência para substituir a religião tradicional
por uma nova religião da humanidade,
marcada pela confiança na razão finalística que às vezes se esqueceu da racionalidade axiológica, como nos
ensinou Max Weber. Nem todos os maçons são inimigos da Igreja, necessariamente
ateus, adeptos da gnose ou agnósticos, porque, entre muitas variedades, há os
que permanecem religiosos, com os seus livros sagrados, ao lado panteístas, hereges
ou simples seguidores estoicos da unidade plural dos divinos.
Anticlericalismo
Já o anticlericalismo difere
do laicismo, dado implicar uma hostilidade aberta face ao mundo clerical, pelo
facto deste ter influência social ou política. Com efeito, o laicismo apenas
rejeita a influência da Igreja na esfera pública, considerando que os assuntos
religiosos pertencem à esfera privada de cada indivíduo.
Isto é, remonta ao anticongreganismo iluminista, sendo,
sobretudo, marcado pelo espírito de resistência à modelação de certas vulgatas
jesuíticas, embora, desde sempre, tenha sido moderado por deísmos ou
humanitarismos panenteístas, nomeadamente por kantianismos e krausismos. Há
assim várias ondas de anticlericalismo desde a Revolução Francesa, com destaque
para o justificado movimento da unificação italiana, a inevitável Kulturkampf de Bismarck, entre 1871 e
1878, ou a Terceira República francesa, marcada pelo positivismo, onde caso
Dreyfus vai agravar a tensão e culmina com a Lei da Separação de 12 de Dezembro
1905, do governo Combes, contra os regressos da intolerância pré-leonina, que
nunca admitiu um liberalismo católico,
em nome do dogma da infalibilidade papal
ou da disciplina das muitas obras dos pretensos guerrilheiros de Cristo, com os seus exercícios e cursilhos
espirituais, pós-medievais e inquisitoriais.
Agnosticismo
Contudo,
ambos os ismos diferem do agnosticismo, termo cunhado por T. H.
Huxley em 1869 (agnosticism), e,
depois, divulgado por Herbert Spencer. Formado a partir do grego agnostos, isto é, aquilo que é relativo
ao desconhecido, assume-se como uma doutrina segundo a qual não é possível
conhecer o que está para além da experiência. Porque os seres humanos nunca
teriam, silogisticamente, suficientes provas para sustentarem uma afirmação ou
para negarem uma proposição.
Neste
sentido, a tese admite a impossibilidade do entendimento humano aceder ao
absoluto. Que não é possível saber se Deus realmente existe ou não. Uma
doutrina que está ligada ao movimento cético do cientismo, principalmente à
rejeição das crenças cristãs.
Diremos que, na história portuguesa contemporânea, o desaguar do
liberdadeiro movimento maçónico
tanto acirra os processos situacionistas demoliberais da monarquia liberal e da
I República, algumas vezes com exaltados devorismos e radicalismos, como também
nunca perdeu o sonho de instauração, ou de luta pela restauração, da liberdade,
como aconteceu face ao contra-revolucionarismo apostólico, ou ao autoritarismo
salazarista.
Entre 1820 e 1918, sempre houve múltiplas maçonarias e sucessivos catolicismos sociais e políticos,
bem como vários anticlericalismos, outros tantos congreganismos, inúmeros
laicismos e não menos fundamentalismos, fanatismos e agnosticismos, todos em
espiral reactiva.
Comecemos por recordar que o
velho reino, esquecido da lusitana antiga
liberdade, segundo o censo de 1821, tinha 3 026 450 indivíduos, dos quais
12 500 eram religiosos, religiosas e serventes dos conventos.
Acrescentemos que em 1834 ainda havia cerca de quatro centenas
de conventos e de meia centena de hospícios (448 casas religiosas, das quais
356 eram conventos de religiosos e 12 de religiosas, 28 colégios, 49 hospícios
e ermidas, bem como 3 seminários). Dominavam os franciscanos (44%), seguindo-se
os agostinhos (9,4%), os carmelitas (7,1%) e os beneditinos (6,5%),
abrangendo-se 6 289 pessoas, segundo números de A. Martins da Silva. E isto num
universo, onde, de acordo com Vitorino Magalhães Godinho, os rendimentos das
ordens religiosas em 1832 andavam pelos 1 162 contos, enquanto o Estado
recolhia apenas 1 600 contos, em impostos diretos...
Isto é, no dealbar do século XIX as funções que hão de ser
nucleares do Estado, enquanto sociedade
perfeita, ainda eram exercidas pelas sociedades
imperfeitas do clero e da nobreza, do ensino à saúde, incluindo a própria
defesa nacional, sem qualquer princípio
da subsidiariedade. Basta recordarmos que só depois de três quartos de
século de república é que foi eleito, por sufrágio
universal e direto, um presidente não-militar, tal como o registo civil só
foi instaurado depois de 1910 e a cidadania individual livre dos coletivismos
de seitas tem menos de um quarto de século e ainda é projeto por cumprir, sobretudo
por não ser ainda efetiva a liberdade de
ensinar e de aprender, com a necessária igualdade de oportunidades, que tem
regredido no ensino público, para gáudio dos mais privilegiados que investem
nos ensinos de reservado direito de
admissão no ranking concordatário
e congreganista, mas de público subsídio e prémio, livre, muitas vezes, do
imposto geral e permanente instaurado por D. João I.
Isto é, a sociedade de ordens do ancien régime nunca se extinguiu de um momento para o outro, por
efeito de uma revolução ou de um decreto, tal como as contrarrevoluções nunca
foram geradas por duas aparições marianas ou por um qualquer golpe de Estado.
Basta assinalar a manutenção de amplas zonas de legitimidade dos donos do poder, no presente
neocorporativismo, na permanência da encomendação feudal da cunhocracia ou no
alastrar dos caciquismos, dos clientelismos, dos nepotismos ou do cancro da compra do poder, a que damos o nome de
corrupção.
Entre o pombalismo e a viradeira
Entre 1800 e 1834, tivemos sucessivas sementes de mudança, quase
todas frustradas, e, entre o pombalismo e a viradeira, talvez seja mais justo
dizermos que houve a tradicional tensão entre o partido dos funcionários e o partido
dos fidalgos, tal como, depois de 1820, foi acentuado o conflito entre o partido dos becas e o partido da tropa, com martinhadas, contra-martinhadas, abriladas e
vilafrancadas, onde os adesivos e os viracasacas do oportunismo passaram de um extremo ao outro da
traição servil, dado que continua a ser difícil a contenção da sociedade da Corte e as heranças da
velha sociedade corporativa, tanto do clero, incluindo a universidade, como da nobreza militar, bem como das
legitimidades carismática e patrimonialista.
Sempre tivemos a ilusão das subversões
a partir do aparelho de Estado, para citar Sottomayor Cardia, desde a
absolutista concessão de uma carta, com que o rei absolutista nos liberalizou, à restauração da democracia
através de um golpe militar.
Daí a incompreensão das raízes da construção do Estado moderno,
semeadas pelo vintismo e pelos projetos racionais da ordem maçónica, em torno
da construção da cidadania, a partir dos homens livres das tutelas corporativas
e dos coletivismos morais, de antes
quebrar que torcer.
Daí alguns fulgores construtivistas dos novos regimes, com os
seus ditatoriais governos provisórios e as consequentes confusões entre a
própria maçonaria e os partidos-sistema, com os sucessivos erros de chamorros
(1834), cartistas (1842), regeneradores (1851) e republicanos (1910).
Infelizmente, habituados aos picos vanguardistas, não costumamos
fazer ressaltar os longos períodos reformistas dos regimes pós-revolucionários,
até porque a literatura de justificação das viradeiras, incluindo a
salazarista, costuma exacerbar erros anteriores, para que se continue a
confundir a árvore com a floresta e a betesga
com o rossio, darwinistas e
haeckelianos com kantianos e krausistas, ou estoicos com ateus.
Tanto os católicos como os maçons mudaram muito durante os
séculos XIX e XX e continua a ser um atentado contra os homens de boa vontade e os homens
livres certa interpretação retroativa da história, feita pelos sucessivos
revisionismos históricos, com as suas propagandas, em música celestial,
adesivas ou viracasacas.
A organização política eclesiástica tem de reconhecer que só se
reconciliou com a democracia a partir de 1891 e não pode reduzir dois séculos
de maçonaria portuguesa a alguns instantes construtivistas de incompreensão das
ditaduras revolucionárias de 1834 ou de 1911, esquecendo os armistícios
regeneradores pós-revolucionários, de sociedade aberta e pluralista. Para que
todos esqueçamos as cumplicidades e os silêncios face à lei proibicionista de
1935, ao contrário dos exemplos de Alberto Moura Pinto e António José de
Almeida, que não tiveram o justo retorno.
Talvez seja preferível notarmos que as relações entre o
religioso da graça e o político da terrena natureza humana, tanto podem
traduzir-se numa conceção teocrática
e fundamentalista como numa conceção
clássica, quando se considera que o político e o religioso são regidos por
um transcendente que lhes é comum: a ordo
rerum, a natureza das coisas, o cosmos, ou transcendente situado do direito racional de conteúdo relativo,
onde a roda do eu vai variando, conforme as circunstâncias do tempo e do lugar
das várias existências e perspetivas, mas permanece o eixo da roda dos valores
e princípios da matéria individual, feita existência do homem concreto, de
carne, sangue e sonhos, com os pés na lama do caminho, mas os olhos nas
estrelas das saudades do futuro.
E talvez importe recordar que os nossos repúblicos renascentistas pré-inquisitoriais optaram por esta
última conceção, assumindo-se à maneira do clássico homo theoreticus, daquele que parte de uma norma universal para uma
instituição particular, com a consequente subordinação das realidades políticas
à transcendência de uma abstração, mantendo o primado da ética sobre o politique d'abord.
Os teólogos e a respetiva ciência
Como refere Eduardo Hinojosa, nessa altura, até os teólogos
praticavam a respetiva ciência como
Cícero considerava a ciência do Direito, enquanto conhecimento das coisas divinas e humanas e ciência do justo e do
injusto. Chamavam-lhe prudência,
conforme João de Barros refere nos seus Panegíricos,
como saber as coisas que se devem saber,
e isto no entendimento das cousas divinas
e humanas
O poder político radica na natureza do homem
Até um jesuíta, como Francisco Suárez, partindo do princípio que
os homens, segundo a ordem da natureza
não se regem nas coisas civis pela revelação, mas pela razão natural,
proclamou, contrariamente a Santo Agostinho e a Lutero, que o poder político não se funda no pecado ou em alguma
desordem, mas na natural condição do homem. Porque o poder de dominar ou reger politicamente aos homens, a nenhum homem em
particular lhe foi dado imediatamente por Deus; este poder só em virtude do direito natural está na comunidade dos
homens, está nos homens e não em cada
um ou num determinado. Assim, o poder político é visto como algo de direito humano, como instituição dos homens e doação da república, algo que surge por
vontade de todos (per voluntatem omnium).
O humanismo laico e não absolutista de Espinosa
Tal como o humanismo laico e não absolutista de Espinosa,
precursor de Rousseau, opondo-se à teocracia de protestantes, católicos e
judeus, vai estruturar a primeira teoria democrática moderna. Primeiro, quando
deixa de considerar a liberdade como mero atributo de uma minoria de cidadãos,
fazendo-a radicar na universalidade humana, na multitudo. Segundo, quando perspetiva a mesma democracia de forma
realista, entendendo-a como uma conjugação do poder e da liberdade e
retirando-a dos domínios da utopia, quando aceita que os homens são iguais do
ponto de vista do direito, mas desiguais do ponto de vista do poder.
Popularismo
democrata-cristão
Aliás, não é provocatório
recordar que até o Partido Popular Italiano, fundado por Luigi Sturzo, se assumiu como
movimento laico, não confessional, ao contrário do que aconteceu como o
movimento português congénere, o Centro
Católico Português, que até foi diretamente inspirado e previamente
autorizado pela Conferência Episcopal Portuguesa, um pouco à semelhança do
partido único da dita União Nacional,
estabelecido decretinamente por resolução do conselho de ministros, onde todos
fomos demais para que as abstenções contassem como votos a favor do
autoritarismo, a fim de que se propagasse a servidão voluntária e se impedisse
a necessária revolta de escravos.
Cidade
laica de inspiração cristã
Do mesmo modo, um Jaques Maritain
defendeu uma cidade laica de inspiração
cristã e um Estado laico cristamente
constituído, isto é, um Estado onde o
profano e o temporal tenham plenamente o seu papel e a sua dignidade de fim e
de agente principal ‑ mas não de fim último nem do agente principal mais
elevado e que levaria também à extraterritorialidade
da pessoa face aos meios temporais e políticos.
Os viciados da história retroativa
Quem reduzir a dimensão do humanismo católico aos episódios
contrarrevolucionários das abriladas de 1824 ou das ações de algum providencialismo,
posto ao serviço da Santa Aliança dos apostólicos, derrotados em 1834, comete o
mesmo vício dos que não reparam que uma certa lei de 1911 foi revista em 1918
por ativistas da mesma instituição que teve como grão-mestre um António José de
Almeida que reatou as relações entre Lisboa e o Vaticano.
Espremer o escravo que temos dentro de nós
Apenas repito, glosando Fernando Pessoa, que se o Estado é superior ao cidadão, o homem está sempre acima do Estado. É
livre e de plurais pertenças, para que o Estado deixe de ser um César, ou de
direito divino, com encontros imediatos com o charlatanismo providencial, e
passe a ser nós todos, homens comuns que espremam,
gota a gota, o escravo que todos têm dentro de si, para glosar
Tchekov.
O Estado somos nós
O Estado da coisa pública,
chame-se cidade, república ou reino, somos nós e não um qualquer L’État c’est moi, dos absolutismos
providencialistas que esqueceram a velha, mas não antiquada, doutrina
aristotélica, cristianizada por São Tomás de Aquino, segundo a qual a cidade
nasceu da natureza humana e não da graça. Daquele elemento voluntário,
produto das pessoas, que, pela ideia de contrato, em nome dessa estrela do
norte que é a justiça, produziram a sociedade política, onde o pacto de associação ou de união sempre foi superior ao pacto de sujeição ou de governo, se para tanto nos submetermos à
ideia de constituição, sem a qual não
há pluralismo, controlo do poder e respeito pelas minorias, nesta cultura de
liberdade a que, hoje, demos o belo nome de Estado de Direito, sinónimo de paz
perpétua, república universal ou peace
through law, o tal que é de-rectum,
longe do torto, em procura da norma e
da regra, a que o plurissecular
simbolismo dos homens livres da intolerância, do fanatismo e da ignorância tem
dado os nomes de compasso e de régua, sempre em abraço armilar, a caminho da cosmopolis e da super-nação futura.
O homem é por exigência da perfeição um animal cívico
Só homem segue regras, porque só aquele que sabe que vai morrer
e procura a raiz do mais além as pode não seguir. O homem é por exigência da perfeição um animal cívico.