De Vieira a Pessoa. Ou a Europa das Doze Estrelas
Um primeiro esboço de enraizamento teórico de Ad Europam
O Império de Vieira
I
O Padre António Vieira, em História do Futuro. Esperanças de
Portugal, Quinto Império do Mundo, vem falar para o mundo inteiro para tudo
o que abraça o mar, tudo o que alumia o Sol, tudo o que cobre e rodeia o Céu,
porque esse mundo real (o mundo de que falo é o mundo) será sujeito a este Quinto Império,
não por nome ou título fantástico, como todos os que agora se chamaram Impérios
do Mundo, senão por domínio e sujeição verdadeira. Todos os reinos se unirão em
um cetro, todas as cabeças obedecerão a uma suprema cabeça, todas as Coroas se
rematarão em um só diadema, e esta será a peanha da Cruz de Cristo [1]. Um Império que não promete mundos nem impérios
titulares, nomes tão alheios da modéstia como da verdade[2],
mas que, contudo, é um Império
da Terra e na terra ... é império da Terra e não do Céu, e que na terra e não
no céu há de ser lida a sua grandeza.
É um domínio soberano e supremo sobre todos os homens,
sobre todos os reis, sobre todas as coisas criadas, para poder dispor delas
conforme o seu arbítrio, dando e tirando reinos, fazendo e desfazendo leis,
castigando e premiando com jurisdição tão própria e direta sobre todo o mundo
como a que os reis particulares têm sobre os seus vassalos e reinos, ou melhor,
com muito maior, mais perfeito e mais excelente domínio, não dependente como o
deles, das criaturas, senão absoluto, soberano, sublime e independente de todos.
Esperança, liberdade, luta
Contrariamente à utopia de uma ilha sem lugar, de uma
cidade do sol muralhada ou da própria ucronia, o futuro de António Vieira nasce a esperança do
presente, do zelo da liberdade e da luta pela pátria. O seu fim é o Império de Cristo ANTÓNIO VIEIRA, História do Futuro, edição de
Maria Leonor Carvalhão Buescu, Lisboa, Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 2ª
ed., 1992, p. 300, não sujeito
às mudanças e inconstâncias do tempo e
que também não recebe a
grandeza e majestade da pompa e aparato[3],
é o Quinto e último[4],
o supremo poder do poder dos
sem poder. Abarca o mundo
inteiro[5].
É Quinto Império não por nome
ou título fantástico, como todos os que até agora se chamaram Impérios do
Mundo, senão por domínio e sujeição verdadeiros. Todos os reinos se unirão em
um ceptro, todas as cabeças obedecerão a uma suprema cabeça, todas as coroas se
rematarão num só diadema, e esta será a peanha da Cruz de Cristo[6].
Diverge, por exemplo, das possessões do Imperador da
Alemanha, envelhecidas
relíquias e quase acabadas do Romano[7],
porque os textos podem dar
títulos, mas não império ... os impérios e reinos não os dá nem os defende a
espada da justiça, senão a justiça da espada[8].
Fará a paz em todo o mundo
Como também escreve D. João de Castro, fará a paz em todo o mundo: a qual
durara muytos anos, em que viviram com grande descanso, repouso & summa
prosperidade os mortaes[9]
Comenius
Paralelamente a este humanismo católico, surge também
uma vaga do humanismo confessional não católico. Comenius, em 1662, defende uma
união política da Europa bem como uma aliança mundial de todos os povos pela
criação de um Senado Mundial e de um Tribunal Internacional da Paz.
Abade de Saint-Pierre
O Abade de Saint-Pierre, em 1713, na véspera do
Tratado de Utreque de 1714, publica um Projet
pour rendre la paix perpétuelle en Europe, onde tenta conciliar as várias
soberanias da Europa (o imperador alemão, o imperador da Rússia, o reis de
França, Espanha, Inglaterra, Dinamarca, Suécia, Polónia, Portugal, Prússia,
Nápoles e Sardenha, os Estados-Gerais holandeses, o soberano de Roma, os
eleitores da Baviera, do Palatinado, os eleitores eclesiásticos do Império, os
suíços e a república de Veneza). Recorde-se que, desde 1700, os europeus viviam
a guerra de Sucessão de Espanha, com a França de Luís XIV, apenas apoiada pela
Baviera, a ter que enfrentar a Grande
Aliança de Haia, com as Províncias Unidas, a Inglaterra, o Imperador, a
maior parte dos príncipes alemães, Portugal e Sabóia.
Charles-Irinée Castel de Saint-Pierre (1658-1743),
capelão da duquesa de Orleães, foi assessor do cardeal Melchior de Polignac no
Congresso de Utreque, entre 1710 e 1712, tendo publicado, no ano seguinte, o
seu Projet, em três
grossos e fastidiosos volumes que tiveram um Abregé,
feito pelo próprio autor, em 1729, com 227 páginas.
Ligando o seu projeto ao suposto plano de Henrique IV,
diz que o mesmo foi por este rei inventé,
e, dedicando-o a Luís XIV, vai, no entanto, bem mais longe: descobri que, se as 18 soberanias
da Europa, para se conservarem no presente governo, para evitarem a guerra
entre elas e para se procurar todas as vantagens de um comércio perpétuo de
nação a nação, querem fazer um tratado de união e um congresso perpétuo pouco
mais ou menos segundo o mesmo modelo das sete soberanias da Holanda, ou das
três soberanias das Suíças, ou das soberanias da Alemanha, descobri, digo, que
o grande poder dos mais fortes não poderia prejudicá-los, a não ser que cada um fosse exatamente
fiel a promessas recíprocas, que o comércio jamais seja interrompido e que
todos os futuros diferendos terminem sem guerra e pela via da arbitragem.
Nestes termos, desdobra o respetivo plano, numa série
de artigos: no artigo 1º, uma aliança perpétua entre os soberanos (haverá a
partir de agora entre os soberanos que assinarem os cinco presentes artigos uma
aliança perpétua para se garantirem nos séculos vindouros das guerras
estrangeiras e civis; para se manterem e suas famílias na posse da soberania,
segundo a ordem estabelecida nas suas nações respetivas; para diminuírem as
despesas militares e aumentarem a segurança publicava; para aperfeiçoarem o comércio,
leis e instituições de seus Estados; para terminarem prontamente sem riscos nem
despesas os litígios futuros; para, enfim, terem a certeza da execução das
promessas e tratados recíprocos)[10];
no artigo 2º, determinava-se que todos os meses os plenipotenciários dos
soberanos aliados fixarão a quantia com que, na proporção às suas rendas,
contribuirá cada Estado para as despesas da grande aliança; no artigo 3º
estabelecia-se que os soberanos aliados a nunca mais recorrerão às armas para
decidirem as questões que entre eles se levantarem e submeter-se-ão À decisão
dos plenipotenciários dos aliados que não entrarem no litígio; no artigo 4º
fixa-se que se algum dos aliados recusar obediência às decisões dos congressos,
e se se rebelar contra ele, a grande aliança o forçará a submeter-se, e será
obrigado a pagar as despesas que para isso se fizerem; no artigo 5º estatui-se
a possibilidade de revisão do pacto por simples maioria, a não ser para estes
cinco artigos, para os quais se requeria a unanimidade, bem como para o caso de
qualquer modificação das fronteiras existentes entre os Estados membros [11].
Todos os Estados que tivessem, pelo menos, um milhão e
duzentos mil súbditos, disporiam de um número de votos igual, enquanto os
pequenos Estados teriam de se unir para atingir o quorum estabelecido. As decisões do Senado
seriam tomadas por maioria e ratificadas seis meses depois por uma maioria de
dois terços.
No plano militar, previa-se que cada Estado, em tempo
de paz, não poderia ter uma força armada superior a seis mil homens. Já em
tempo de guerra, o Senado
Europeu, sedeado rotativamente em Estrasburgo e em Dijon, nomearia um
generalíssimo, que não poderia ser membro de qualquer casa soberana, e
constituir-se-ia uma força de quinhentos mil homens, vinte e quatro mil por
cada Estado. Condenava-se também qualquer espécie de diplomacia secreta entre
os Estados membros.
Finalmente, considerava que todas as soberanias terão sempre os
mesmos limites que atualmente dispõem, não podendo qualquer território ser
desmembrado de qualquer soberania, nem qualquer outro poderá ser acrescentado
por sucessão, pacto entre diferentes casas, eleição, doação, cessão, venda,
conquista, submissão voluntária dos súbditos ou qualquer outra forma[12].
O projeto vale evidentemente como mais uma das boas
intenções totalmente inadequadas às circunstâncias daquele equilíbrio
absolutista e mercantilista, dado que, nos anos seguintes, novas guerras se
seguem, aproveitando os pretextos das sucessões, num confronto entre Habsburgos
e Bourbons, como a guerra se sucessão da Polónia (1733-1738), a guerra da
sucessão da Áustria (1740-1748) e a guerra dos sete Anos (1756-1763)
É evidente que o projeto não convinha aos estadistas
de então, dado que não só impunha às soberania existentes os limites do direito
(a sociedade organizada dos Estados deverá garantir os direitos e a vida de
cada Estado) como pretendia
conservá-las ou congelá-las nos limites que tinham atingido (todas as
soberanias terão sempre os mesmos limites que têm presentemente, nenhum
território poderá ser desmembrado de qualquer soberania, e nenhum outro poderá
ser acrescentado por sucessão, pacto de casas diferentes, eleição, doação,
cessão, venda, conquista, submissão voluntária de súbditos ou qualquer outro).
Século da força e dos Estados em Movimento
Estávamos em pleno apogeu do século da força e dos Estados em movimento, onde cada
soberano adotava a máxima que Hobbes atribuíra ao Leviathan em 1651: non est potestas super terram quae
comparetur ei. Estávamos num tempo onde a
medida do direito é a utilidade e
onde cada soberano tinha tantos direitos quanto o respetivos poderes, onde cada
Estado era um lobo para os outros Estados, numa guerra de todos contra todos.
Rousseau
Contudo, ao contrário do que sucedera com os outros
projetistas da paz, o Abade vai ser lido pela opinião crítica da république des lêtres de então, principalmente por
Rousseau e por Kant.
Rousseau, por exemplo, em 1756, foi encarregado pela
família e pelos amigos do abade de resumir aquilo que qualificava como um fatras de vingt volumes.
Em 1761, numas contidas, objetivas e elegantes
quarenta páginas publica um Extrait
du Projet de Paix Perpétuelle de l'Abbé de Saint Pierre, e, em 1782, volta
a referir-se à mesma num Jugement
sur la Paix Perpétuelle[13].
Neste, acusa os soberanos europeus de serem egoístas e ambiciosos pelo facto de
não aceitarem as propostas do abade, porque o projecto, caso pudesse ser
realizado por pessoas honestas, seria possível estabelecer a république européenne num instante, realizá-la num só dia, o que seria
suficiente para a fazer durar eternamente dado que cada um poderia encontrar
pela experiência o seu proveito particular no bem comum[14].
Só que os príncipes não veem o seu interesse real mas
apenas o seu interesse aparente. E aqui eis que Rousseau trata de, em nome do
realismo, criticar o utopismo do Abade: ele
tinha tanto prazer em ver funcionar a sua máquina que dificilmente sonhava nos
meios de a fazer andar; a sua imaginação enganava perpetuamente a sua razão[15].
Assim, tenta corrigir a versão do abade invocando em
seu auxílio o grand dessein de Henrique IV, dado acreditar que
os meios de realizar a Europa só poderiam ser levados a cabo pela força para se
mudar o estado de coisas: ninguém
viu em nenhum lado ligas federativas estabelecerem-se a não ser através de
revoluções: e, na base deste princípio, quem de nós ousará dizer se esta liga
europeia é para desejar ou para recear?[16].
Se raciocinámos com exatidão ao expor este plano, está
demonstrado: 1º que o estabelecimento da paz perpétua depende unicamente do
consentimento dos soberanos, e a única dificuldade para a sua realização é a
existência que eles lhe possam opor; 2º que esta instituição por todos os modos
lhes seria útil, e que não há comparação possível entre os inconvenientes e as
suas vantagens; 3º que é razoável supor que a vontade dos soberanos esteja de
acordo com os seus interesses; 4º finalmente que esta instituição, organizada
conforme o plano proposto, seria sólida e durável e preencheria perfeitamente o
seu fim.
Isto não quer dizer que os soberanos adotarão este
projeto (quem pode responder pela vontade de outrem?) mas que o adotariam se
conhecessem os seus verdadeiros interesses; porque, é preciso que se note, não
supusemos os homens tais como deviam ser: bons, generosos, desinteressados e
amando o bem público por humanidade; mas tais como são: injustos, ávidos e
preferindo a tudo o seu interesse.
A única coisa que lhes supusemos foi a razão
suficiente para conhecer o que lhes é útil, e o ânimo bastante para fazerem a
própria felicidade. Se, apesar de tudo isto, ficar sem execução este projeto,
não é porque seja quimérico; mas sim porque os homens são insensatos, e é uma
espécie de loucura ser sábio no meio dos loucos[17]
Mas Rousseau, nesta crítica a Saint-Pierre, acaba
também ele por fazer uma teoria sobre a união europeia, distinguindo a ideia
antiga de confederação, à maneira dos amphictiões gregos, das modernas, e
considerando que nenhuma daquelas iguala
a perfeição do Corpo Germânico, da liga helvética e dos Estados Gerais[18].
Isto é, o genebrino Rousseau, confessa-se adepto do
modelo do Sacro Império e coloca, na sua linha de desenvolvimento, tanto o
modelo da Suíça como o dos Países Baixos.
Mas diz mais: se acha que estes modelos antigos e
modernos são confederações
políticas, expressas na legislação dos povos, haveria outras tácitas, mas não menos reais,
formadas pela analogia dos costumes, dos interesses mútuos, por uma religião e
um direito das gentes comum, pelo comércio, artes e ciências, enfim pela
multiplicidade d relações de todo o género. Essa espécie de sociedade seria
a então existente na Europa[19].
O Extrait de Rousseau vai fazer circular o
projeto do Abade. Voltaire vai dedicar-lhe o seu Rescrit de l'Empereur de la Chine à
l'occasion du projet de Paix Perpétuelle, onde o imperador da China aparece
a chamar ao autor do projecto l'abbé
Saint-Pierre d'Utopie e trata
de construir um modelo alternativo cuja execução atribui a Frederico II JEAN-PIERRE FAYE, op. cit., pp. 159 ss.
Kant
Kant (1724-1804), em Ideen
zu einer Gescichte der Menschheit in Weltbürgerlicher Absicht, de 1784, vai
defender uma república
universal em que cada
Estado, mesmo o mais pequeno, pudesse esperar a sua segurança e os seus direito,
não do seu próprio poder ou do seu próprio juízo jurídico, mas apenas dessa
grande sociedade das nações (foedus amphictyonum), duma força unida e da
decisão da vontade comum fundamentada em leis KANT, A Ideia de uma História Universal
de um Ponto de Vista Cosmopolita, de 1784, in PATRICK GARDINER, Teorias da História, p. 35.
República universal
A república universal (Weltrepublik) em Kant
constitui, assim, um mero princípio regulativo, um mero imperativo categórico.
O mesmo imperativo que impõe um Estado-razão, enquanto exigência para se
superar o estado de natureza, visando estabelecer
o reinado do direito na sociedade das nações. E isto porque a paz pelo direito não é uma
quimera, mas um problema a resolver, consequência do reinado do direito, que o
progresso um dia estabelecerá Sobre
a matéria BLANDINE KRIEGEL, Kant
et l'Idée de République Universelle, in La
Politique de la Raison, Paris, Payot, 1994, pp. 25-40.
Uma sociedade civil que administre universalmente o
direito
Nessa obra, Kant considera que o maior problema da espécie humana,
a cuja solução a natureza força o homem, é o estabelecimento de uma sociedade
civil, que administre universalmente o direito, isto é, a criação de uma sociedade, em que
a liberdade, submetida a leis externas, se encontre ligada, o mais
estreitamente possível, a um poder irresistível, isto é, à criação duma
constituição civil e perfeitamente justa KANT, Ideia de uma História Universal,
de 1784, apud GARDINER, p. 33. Ora este
problema é simultaneamente o mais difícil e o que mais tardiamente é resolvido
pela espécie humana (id. P.
34), porque o problema do
estabelecimento de uma constituição civil perfeita depende do problema das
relações legais entre os Estados, e não pode ser resolvido sem se encontrar a
solução deste segundo (p. 35).
Contra o estado de miséria
Por visionária que esta ideia possa parecer ... ela é
todavia a inevitável saída do estado de miséria em que os homens se põem uns
aos outros, miséria essa que há de forçar os estados (por muito que lhes custe)
exatamente à resolução a que foi forçado, embora contra a sua vontade, o homem
selvagem: a de renunciar à sua brutal liberdade e procurar tranquilidade e
segurança numa constituição legalmente estabelecida. - Assim, todas as guerras
são apenas outras tantas tentativas (não na intenção dos homens, mas na da
natureza) para suscitar novas relações entre os estados, e, através da destruição,
ou pelo menos do desmembramento dos antigos, formar novos corpos, que por sua
vez não são capazes de se manter em mesmos ou em relação aos outros, pelo que
terão de passar por novas e semelhantes revoluções; até que, finalmente, em
parte devido à melhor ordenação possível da constituição civil, internamente,
em parte devido a acordos comuns e à legislação, externamente, se conseguirá um
estado de coisas que, à semelhança de uma comunidade civil, será capaz de se
manter por si mesmo como um autómato (pp. 35-36).
Paz Perpétua
Contudo, é no seu opúsculo Projeto Filosófico da Paz Perpétua (Zum ewigen Frieden ein
philosophischer Entwurf), de 1795 que o modelo atinge as suas culminâncias Ver a trad. fr., Projet d Paix Perpétuelle. Esquisse
Philosophique, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1992.
Na primeira secção desta obra, elabora uma série de artigos preliminares tendo em vista uma paz perpétua entre os Estados:
1º Nenhum
tratado de paz deve valer como tal, se o mesmo foi concluído reservando-se
tacitamente matéria para uma guerra futura.
Para Kant, tal tipo de tratado de paz não passa de um armistício de uma suspensão das armas que não pode ser considerado
como um estado de paz perpétua.
2ºNenhum Estado independente (pequeno ou grande,
pouco importa aqui) poderá ser adquirido por outro Estado, por herança, troca,
compra ou doação.
Porque um Estado não é um ter, um património, mas sim uma
sociedade humana.
3º Os
exércitos permanentes (miles perpetuus) devem ser inteiramente suprimidos com o
tempo.
4ºNão podem contrair-se dividas públicas tendo em
vista conflitos externos do Estado.
5º Nenhum
Estado deve intervir pela força na constituição e no governo de um outro Estado.
6º Nenhum
Estado, em guerra com outro, deve permitir hostilidades de natureza tal que
tornem impossível a confiança recíproca a quando da futura paz: por exemplo: a
utilização de assassinatos, de envenenamentos, da violação de uma capitulação,
da maquinação da traição no Estado com o qual se está em guerra
Na segunda secção, enumera os artigos definitivos
tendo em vista a paz perpétua entre os Estados:
1º-Em todo o Estado a constituição deve ser
republicana.
Neste sentido, considera que a constituição primeiramente
instituída seguindo os princípios da liberdade pertence aos membros de uma
sociedade (enquanto homens); em segundo lugar, seguindo os princípios da
dependência de todos, de uma única legislação comum (enquanto súbditos) e em
terceiro lugar, conforme à igualdade desses súbditos (como cidadãos)
2º- O
direito das gentes deve ser fundado sobre um federalismo de Estados livres.
É que para Kant, os
povos, enquanto Estados, podem ser julgados como os indivíduos; no seu estado
de natureza (isto é, independentes de leis que lhe sejam exteriores) lesam-se
mutuamente, a começar pelo facto de serem vizinhos e cada um, tendo em vista a
respectiva segurança, pode e deve exigir do outro, que ambos se submetam a uma
constituição, semelhante à constituição civil onde cada um possa ver o seu
direito garantido. Isto constituiria uma liga de povos (Völkerbund) que não
seria necessariamente um Estado de povos (Völkerstaat ou civitas
gentium). Nisso haveria uma certa contradição, dado que qualquer Estado, com
efeito, compreende a relação de um superior (o legislador) com um inferior (
aquele que obedece, isto é, o povo; mas muitos povos num Estado não
constituiria senão um povo o que (porque devemos aqui ter em conta os direitos
recíprocos dos povos enquanto constituem um número determinado de Estados
diferentes sem os confundir num só Estado) contradiz a hipótese Idem, pp. 15-16
Mais acrescenta: o
método utilizado pelos Estados para prosseguir o seu direito nunca pode ser um
processo como perante um tribunal exterior, mas unicamente a guerra; pela qual,
todavia, como pelo seu resultado favorável, a vitória, nada é decidido
relativamente ao direito; o tratado de paz de facto põe fim à guerra presente
... mas não ao estado de guerra Idem,
pp. 22-23
Deste modo, teríamos um
Estado de povos (civitas gentium) que ..englobaria finalmente todos os povos da
terra
Direito cosmopolita
3º O
direito cosmopolita deve limitar-se às condições de hospitalidade universal Idem, p. 29
A hospitalidade era entendida como o direito que tem um estrangeiros,
por ocasião da sua chegada ao território de outrem, de não ser tratado como um
inimigo.
Contra a sabedoria amoral
Constituiria uma defesa da moralização da política.
Contra as máximas sofisticas do fac
et excusa, do si fecisti,
nega, do divide et impera que constituiriam as astúcias utilizadas pela
sabedoria imoral.
Acordo da política com a moral
Assim, o
acordo da política com a moral só é possível numa união federativa –
Genossenschaft – (que é portanto dada à priori, e necessária segundo os
princípios de direito); e toda a prudência política tem por base jurídica a
instituição desta união, dando-lhe o maior desenvolvimento possível
Contra a monarquia universal
Kant critica a ideia da monarquia universal,
considerando-a como um despotismo
sem alma, depois de ter aniquilado os germes do bem, acaba sempre por conduzir
à anarquia Apud VOYENNE, p. 106,
defendendo as leis públicas de
uma liga de povos que crescerá sempre e abraçará
finalmente todos os povos da terra [20].
Aliança confederativa entre Estados soberanos
Como espaço intermédio, acredita numa simples aliança
confederativa entre Estados soberanos: pode
chamar-se a esta espécie de aliança (Verein) de alguns Estados, fundada na
manutenção da paz, um Congresso permanente dos Estados, à qual é permitido a
cada um dos Estados vizinhos associar-se. Tal foi (pelo menos no que diz
respeito às formalidades do direito das gentes, relativamente à manutenção da
paz) a assembleia dos Estados Gerais que teve lugar em Haia na primeira metade
deste século [21] e onde os ministros da maior
parte das cortes da Europa, e mesmo as mais pequenas repúblicas, apresentaram
as suas queixas contra as hostilidades promovidas por uns contra os outros e
fizeram assim de toda a Europa como um só Estado federado, que transformaram em
árbitro dos seus diferendos políticos ... Não é pois preciso aqui entender por
Congresso senão uma espécie de união voluntária e revogável a qualquer tempo,
de diversos Estados e não como a dos Estados Unidos da América, uma união
fundada numa constituição política e, portanto, indissolúvel. Só assim pode
realizar-se a ideia de um direito público das gentes que acabe com os
diferendos entre os povos de uma maneira civil, como através de um processo e
não de uma maneira bárbara (à maneira dos selvagens), isto é, pela guerra VOYENNE, pp. 107-108.
Cosmopolitismo
Para ele, o direito dos Estados (Staatenrecht, ius publicum civitatum) é um
direito deficiente ou precário, havendo que constituir uma união de Estados (Staatsverein)
ou um Estado dos povos (Völkerstaat, civitas gentium), com um direito cosmopolítico (Weltbürgerrecht, ius cosmopoliticum), um direito
das gentes que geraria uma liga de povos (Völkerbund) que não teria
poder soberano, constituindo uma espécie de federação (Genossenschaft, Föderalitat, foedus Amphyctionum),
sempre denunciável, tudo, dentro da sua classificação tripartida do direito
público, num crescendo que vai do direito político (Staatsrecht), passa
pelo direito das gentes (Völkerrecht), até chegar ao direito
cosmopolítico[22].
Filangieri
Outros autores seguem na mesma senda jusracionalista. Gaetano
Filangieri (1762-1786), com o império
da paz e da razão, considera que com o despotismo esclarecido havia chegado
a paz perpétua:
Para ele, a
estabilidade das monarquias, formada por uma espécie de liga e de confederação
geral, opondo uma barreira à ambição dos príncipes, os obriga a voltarem as
suas vistas para os verdadeiros interesses das Nações. Não se ouvem mais
retinir à roda dos tronos senão palavras de reforma e de leis; prepara-se uma
revolução útil aos direitos e à felicidade dos homens; as desordens debaixo de
que eles gemem têm aparecido aos olhos dos soberanos com os sinais espantosos
que os acompanham; os seus ouvidos não são mais feridos, como em outro tempo,
pelo estrondo das armas; e eles têm escutado os gemidos de uma multidão de
vítimas que imola todos os dias uma legislação bárbara e obscura; já se ocupam
de todas as partes em curar tantos males; de todas as partes uma fermentação
salutífera vai fazer nascer a felicidade pública Apud JOSÉ ACÚRSIO DAS NEVES, Manifesto da Razão Contra as
Uasurpações Francesas [1808],
in Obras Completas, vol 5,
Porto, Edições Afrontamento, s.d., p. 11.
Vico
Giambattista Vico
(1668-1774), nos seus Prinzipi di una Scienza Nuova intorno alla
Commune Natura delle Nazione, Nápoles, 1725, vem dizer omnis orbis
terrarum respublicae un civitas magna cuius Deus hominisque habet communionem[23]. É que na idade dos homens, haveria uma equidade
natural que reina naturalmente nas repúblicas livres, onde os
povos, cada qual pelo seu bem particular (e sem entenderem que é o mesmo para
todos) são levados a ditar leis universais[24],
existe na natureza humana uma língua mental comum a todas as nações[25].
Montesquieu
Montesquieu (1689-1755),
em De l'Esprit des Lois, de 1748, considera que as coisas
são tais na Europa que todos os Estados dependem uns dos outros. A França tem
necessidade da opulência da Polónia e da Moscóvia., como a Guiana tem
necessidade da Bretanha e a Bretanha de Anjou, falando na Europa como um
Estado composto de várias províncias[26] e
utilizando também os qualificativos de Grand République, république
fédérative mixte, état plus grand e societé de
societés[27].
Vattel
O suíço Emerich de Vattel
(1714-1767), em Le Droit des Gens ou Principes de la Loi
Naturelle appliqués à la conduite et aux affaires des nations et des souverains,
de 1758, considera a Europa como uma societé des nations, cujos
membros, embora autónomos, se unem para manter uma ordem apoiada na liberdade.[28]
Gargaz
Em 1782, Pierre-André
Gargaz, sob os auspícios de Benjamin Franklin, vê por este ser publicado um Projecto
de Paz Universal e Perpétua sob o título de Conciliation de
toutes les Nations de l'Europe. O mesmo Franklin observava então, numa
carta escrita a um amigo francês: não descortino porque que não
podereis levar a termo na Europa o projecto do bom rei Henrique IV e formar uma
união federal e uma grande república de todos os Estados e reinos diferentes,
por meio de uma convenção análoga[29].
Bentham
Entre 1786 e 1789,
Jeremy Bentham (1747-1832) elaborou a Plan for an Universal and
Perpetual Peace, mas que apenas foi publicado postumamente, em 1843, como o
quarto ensaio dos seus Principles of International Law[30].
Considerando que a
guerra é uma espécie de processo, proclama a necessidade de estabelecimento
de um tribunal para não haver haverá guerra. A decisão
dos árbitros, justa ou injusta, salvará a honra e os interesses da nação
condenada.
Tentando evitar a
guerra, Bentham, o nomocrata, propõe a redação de um código de leis
internacionais, aperfeiçoando as leis já existentes e transformando em lei o
que até aí era costume, acreditando que muitas guerras tiveram por
única ou principal causa a ignorância ou a incompetência de um legista ou de um
geómetra [31]
Aí imagina a instauração
de uma dieta geral ou de uma assembleia das nações, composta por dois deputados
por cada potência, a quem caberia julgar as questões que se levantassem entre
os Estados, tornar públicas em todos os países federados as suas decisões e
proclamar, depois de um certo prazo, em público pregão, nos diversos Estados da
Europa, o nome da nação refractária[32].
Bentham, em vez de se
dirigir a príncipes e soberanos, diz dirigir-se aos povos e considera como
elementos prévios da paz tanto o free trade e a liberdade de
imprensa, como a redução dos armamentos e a emancipação das colónias, porque
estas tanto seriam uma eterna causa de discórdias e um pretexto para a
manutenção e o fomento do protecionismo[33].
Mesmo depois da
Revolução Francesa, vários autores vão continuar a pugnar por um modelo de
unificação europeia assente na linha mundialista de um projeto de paz perpétua,
marcado pelas boas intenções do humanismo laico.
Novalis
Em 1799, o luterano de
obediência morávia, Friedrich von Hardenberg Novalis (1772-1801), em Die
Christenheit oder Europa, criticando a Reforma por ter quebrado a unidade
da res publica christiana, considera que talvez a Europa
venha a acordar, talvez estejamos na aurora de um Estado dos Estados, de uma
Ciência Política ... é preciso que venha o tempo sagrado da paz eterna, onde a
Nova Jerusalém seja a capital[34].
Considerando que só
a religião pode restaurar a Europa, invoca a necessidade de uma paz
eterna que só misticamente poderia realizar-se, reclama a instauração
de uma internacional mística, tal como havia sido a Igreja Católica na Idade
Média, a única forma que visiona para superar a razão de Estado e
a luta dos egoísmos nacionais[35].
Cloots
No ano de 1800, sob o
nome de Anarcharsis Cloots, pseudónimo de um prussiano de ascendência
holandesa, surgiu outro Project de Paix Générale et Perpétuelle,
dirigido ao rei de Espanha, onde o ideal unitário da Revolução se
volvia num modelo cosmopolita , suscetível de, pelo nivelamento,
ser extensivo a todo o género humano[36]. O
mesmo autor, já em 21 de Abril de 1792 havia enviado à Convenção um escrito
denominado La République Universelle, onde preconizava uma República
Mundial centralizada , cuja capital seria Paris e que ele qualificava
como a República dos Homens, dos Irmãos, dos Universais[37].
No projecto de 1800
defende a constituição em Roma de um tribunal da Europa composto
por um membro de cada potência europeia, com a missão de julgar
qualquer questão política; garantir uma paz geral e perpétua, e fazer respeitar
o direito das gentes, também dito Lei das Nações[38].
O mesmo seria perpétuo e permanente, reunindo duas vezes por semana[39], cabendo-lhe, do mesmo modo, governar a cidade eterna
e os monumentos de Roma, em vez do papa[40].
Aí também se estabelece
um curioso programa de desarmamento: em 1805 seriam desmobilizados metade dos
exércitos da terra e do mar; em 1810, a totalidade das forças armadas,
mantendo-se contudo no mediterrâneo uma força suficiente para enfrentar os
piratas barbarescos, se eles continuassem o sistema de pilhagem[41].
Assim se poderia dar
ao comércio a maior liberdade possível[42]
Gondon
Em 1807 Gondon, com novo Projecto
de Paz Geral e Perpétua condena o modelo vigente de equilíbrio
europeu, pelo facto do mesmo assentar na oposição entre blocos rivais e,
tentando superar a questão, faz uma divisão entre a independência civil,
que continuaria a caber aos Estados, e o domínio político, que
passaria a caber à Europa[43].
Em 1808 Droit
Public et Droit des Gens retoma as ideias de Bentham sobre a paz
assente na liberdade de comércio e, rejeitando a fórmula federal, por poder prejudicar
a liberdade de cada Estado; propõe um Estado maior que
formaria um só governo político; seria este Estado uma sociedade
geral composta por várias sociedades particulares, onde os príncipes, sem nada
perder da sua soberania, se tornarão, por assim dizer, uns relativamente aos
outros, cidadãos para a paz e a felicidade dos povos[44].
Krause
Em 1814, Karl Krause
(1781-1832), em Entwurf eines europäischen Saatenbundes als Basis des
allgemeinen Friedens ("Projecto de confederação europeia com base
numa paz geral") considera que a confederação jurídica mundial (Erdrechtsbund)
constitui o fim último da história do direito.
Livre-cambismo
Um capítulo especial
merecem os livre-cambistas como Adam Smith defensores daquilo que List
considera como uma economia cosmopolita marcados pela ideia
cosmopolita da liberdade absoluta[45], de uma economia
humanitária onde a ideia de paz perpétua serve de base a todos
os seus argumentos[46]
Neste sentido Say pede
explicitamente que se admita a existência de uma república universal para
conceber a ideia da liberdade do comércio[47].
List cita a propósito o
smithiano norte-americano Thomas Cooper que chega mesmo a negar a existência da
nacionalidade: uma invenção gramatical, imaginada unicamente para
poupar perífrases, uma não-entidade, qualquer coisa que não tem existência a
não ser na cabeça dos homens políticos[48].
Comentando estas
posições, List considera que as mesmas assentam sobre uma ideia
verdadeira que não tomaram em conta as nacionalidades, os seus
interesses, o seu estado particular, e de os conciliar com a ideia de união
universal e da paz perpétua. A escola admitiu como realizado um estado de
coisas a vir. Pressupõe a existência da associação universal e da paz perpétua,
e daí conclui sobre as grandes vantagens da liberdade do comércio, Confunde
assim o efeito com a causa. A paz perpétua, existe entre províncias e Estados
já associados; é desta associação que derivou a respectiva união comercial;
devem à paz perpétua em que vivem as vantagens que esta lhes concedeu. Todos os
exemplos que nos apresenta a história mostram-nos que a união política precede
a união comercial. Ela não contribui para nada sempre que a segunda cortou o
acesso à primeira. No estado actual do mundo, a liberdade do comércio
enfanterait, em lugar da república universal, a sujeição universal dos povos à
supremacia da potência preponderante nas manufacturas, no comércio e na
navegação.
A república universal,
tal como a entendiam Henrique IV e o abade de Saint-Pierre, isto é, uma
associação na qual todas as nações reconheceriam entre si um regime legal
renunciariam a fazer justiça por elas mesmas, não é realizável a não ser que um
certo número atinjam um certo grau de igualdade de indústria e de civilização,
de educação política e de poder. A liberdade do comércio não pode estender-se a
não ser pelo desenvolvimento gradual desta união; é apenas através dela que se
torna possível conceder a todos os povos as grandes vantagens que as províncias
e os Estados associados nos oferecem hoje como exemplo. O sistema protector,
enquanto o único meio de elevar os Estados menos avançados em civilização ao
nível da nação preponderante... aparece ... como o mais poderoso produtor da
associação final dos povos, e por consequência da liberdade do comércio.[49]
Saint-Simon
Logo após a primeira
queda de Napoleão, em Outubro de 1814, um mês depois de se iniciar o Congresso
de Viena, Claude Henri de Rouvroy, conde de Saint-Simon (1760-1825) e Augustin
Thierry publicavam o ensaio De la Réorganisation de la Societé
Européenne, ou de la Necessité et des Moyens de Rassembler les Peuples de
l'Europe en un Seul Corps Politique en Conservant à Chacun son Indépendance
Nationale que, conforme salienta Rougemont, constitui o primeiro
modelo de unificação europeia que rompe com a tradição dos anteriores
projectistas da paz, dado que, em vez de dirigir-se aos príncipes, volta-se
directamente para os povos, propondo a eleição de um parlamento europeu.
O modelo, que invoca a
experiência medieval, embora substitua a fé religiosa pela fé na ciência,
considerada como le nouveau christianisme, prevê, a existência de
um rei europeu, apoiada num sistema de duas câmaras, uma com pares de nomeação
régia e outra, com representantes das grandes categorias económicas e
profissionais.
Durante a Idade Média
oferece-nos a Europa a imagem de uma síntese política, coordenada sob o influxo
do princípio cristão, ou antes católico, incarnado no papado. Desde o Tratado
de Vestefália, porém, toda a unidade se desvaneceu. Surda ou declarada a guerra
tornou-se permanente. A história é uma série de emboscadas. Apenas, como trégua
passageira, pode tomar-se a paz concluída. O único meio de estabelecer na
Europa uma paz duradoura é reunir os povos numa única organização.
Tão justa e grande ideia
teve, de facto, o Abade de Saint-Pierre. Foi, porém, incompleta, impraticável,
quase. O seu plano deixava de pé o antagonismo de interesses, não criando uma
autoridade suficientemente forte, a fim de tornar impossíveis resistências.
A primeira condição de
uma organização política europeia é a homogeneidade das partes que a compõem.
As instituições devem, por assim dizer, tornar-se a consequência de uma
concepção única, e o governo deve, a todos os respeitos, conservar a mesma
forma, invariável sempre.
O governo geral deve
estar independente dos governos nacionais. Aqueles que compuserem o governo
geral devem ser arrastados pela sua posição à concepção de vistas gerais,
ocupando-se especialmente dos interesses gerais. Neles reside o poder em toda a
plenitude. Nada devem aos estranhos. E disto se devem compenetrar. Acima de
tudo a opinião pública, cujo órgão eles representam.
A melhor forma de
governo é a parlamentar, em virtude da qual o governo pertence ai rei e às duas
câmaras.
Por isso que o governo
parlamentar é o melhor de todas as constituições, - devem todas as nações
europeias ser governadas, cada uma por um parlamento nacional, concorrendo
assim para a formação de um parlamento geral, cuja missão é decidir acerca dos
interesses, comuns a toda a sociedade europeia.
A Europa teria a melhor
organização possível, se todas as nações que ela encerra, sendo governadas,
cada uma por um parlamento, reconhecessem a supremacia de um parlamento geral,
colocado acima de todos os governos nacionais, e investido do poder de julgar
as suas contendas.
Observada esta fórmula,
aliás muito clara e precisa, nada mais nos resta do que traçar a constituição
de um parlamento europeu.
A sua formação constará
de uma câmara de deputados, de uma câmara de pares e de um rei.
A câmara de deputados,
exclusivamente composta de sábios, de magistrados e de administradores, será
formada de duzentos e quarenta membros, em razão de quatro deputados para cada
milhão de europeus, versados nos elementos de leitura e de escrita: um
negociante, um magistrado, um sábio e um administrador.
Contudo, o projeto é
naturalmente marcado pelas circunstâncias da queda de Napoleão e procura
sobretudo resolver o entendimento entre franceses e britânicos, propondo que a
relação entre as duas potências se coloque no plano dos interesses
comuns e dos entendimentos sólidos.
Mas, se no plano da
política interna europeia se adota uma postura pacifista, porque isso
corresponderia ao interesse dos produtores, eis que o projeto não deixa de
considerar a expansão colonial como um dos principais objetivos da unidade
europeia proposta.
Filantropismo quaker
Depois deste projeto de
Saint-Simon, eis que o pacifismo filantrópico e cosmopolita, de matriz quaker,
também vai grassando na Europa, promovendo uma série de congressos de
sociedades de paz, entre 1843 e 1851.
O movimento de constituição
das sociedades de paz, apoiado pelos quakers, foi
inspirado por um escrito de 1814, do norte-americano Noah Worcester, Revisão
Solene da Prática da Guerra. Em 1816, depois de William Allen, ter fundado
o jornal pacifista The Herald of Peace, o movimento propaga-se à
Grã-Bretanha, Alemanha, Holanda e Suíça, onde era mais fácil a ligação a
movimentos protestantes. Cinco anos depois, as sociedades de paz chegam
a França e, na década de trinta, já se espalham por quase toda a Europa.
Congresso de Londres
Em 1843, em Londres, já
surge o I Congresso internacional das sociedades de paz, presidido
pelo deputado britânico Charles Hindley, tendo como co-organizadores uma
sociedade americana e uma sociedade britânica da paz. Nele se propõe a solução
dos conflitos internacionais por meio da arbitragem e a renúncia
à guerra como meio político.
Em 1848 é a vez do II
Congresso, realizado em Bruxelas, onde o tema forte já é o desarmamento.
O III Congresso
realiza-se em Paris, em Agosto de 1849, sob a presidência de Victor Hugo. Aqui,
o movimento já perde o carácter confessional dos primeiros tempos, apesar da
iniciativa continuar a pertencer dominantemente a protestantes ingleses, dos
quais se destaca Elihu Burrit[1].
Congresso de Frankfurt
O IV ocorreu em
Francoforte, em 1850, e o V e último em Londres, no ano de 1851.
Segundo as conclusões deste último congresso, defende-se, em primeiro lugar, uma propaganda pacifista para dessarreigar do coração dos homens os ódios hereditários, os ciúmes políticos e comerciais, que têm sido causa de tantas guerras desastrosas; propõe-se o estabelecimento da arbitragem, como forma de superação de diferendos; insiste-se num processo de desarmamento pela liquidação dos exércitos permanentes; criticam-se os empréstimos para a compra de armas; defende-se o princípio segundo o qual os povos devem ter a liberdade de regular os seus interesses próprios, condenando-se toda e qualquer intervenção armada, ou ameaçadora dos governos nos negócios internos dos Estados estrangeiros; reprova-se o sistema de agressões e violências empregado pelos povos civilizados para com as tribos semi-selvagens; e termina mostrando simpatia pela grande ideia que originou a exposição universal dos produtos industriais.
Liberalismo, pacifismo e
filantropia
Este misto de
liberalismo, pacifismo e filantropia vai continuar a influenciar vários
autores, desde o austríaco A.H.Fried (1864-1921), autor de Handbuch der
Friedensbewegung, de 1905, ao alemão Walter Schucking (1875-1935), autor de Die
Organisation der Welt, de 1909.
Do mesmo teor é a
proposta do sueco A. B. Nobel (1833-1896) que vai estar na origem do Prémio
Nobel da paz. Por seu lado, o milionário Andrew Carnegie (1835-1919),
cognominado com o epíteto de rei do aço, vai criar a Fundação
Carnegie para a paz Internacional, em 1910, e a Church Peace Union,
em Fevereiro de 1914. Esta última instituição, destinada a procurar saber como
a religião pode assegurar a paz, vai depois dar origem a uma Conferência
Mundial das Igrejas, em 1 de Agosto de 1914.
As ideologias
pós-napoleónicas
A balança da Europa
pós-napoleónica, marcada pela força da Santa Aliança vai,
entretanto, ser abalada por ideologias que pretendem subverter
o equilíbrio alcançado e que recebem o impulso de algumas
alterações políticas, desde a revolução orleanista de 1830 à primavera
dos povos de 1848. Do socialismo dito utópico ao republicanismo,
do positivismo ao próprio anarquismo federalista,
os contestatários da ordem europeia, não deixam de clamar por
formas de unificação, advogando, nalguns casos, a constituição de uns Estados
Unidos da Europa, pelo menos desde que Victor Hugo usou a palavra em 17 de
Julho de 1851.
Mazzini
Começamos pela figura de
encruzilhada que foi Giuseppe Mazzini (1805-1872) que, depois de tentar
conciliar a ideia de federação europeia com o nacionalismo
italiano, acabou no gnosticismo da Terceira Roma. Mazzini, no
manifesto da sociedade secreta Jovem Itália, emitido em 1831, em
Marselha, onde estava exilado, dizia que a constituição de unidades nacionais,
era o presságio da grande Federação Europeia que deve unir numa só
associação todas as famílias do antigo mundo. A federação dos povos livres apagará
a divisão dos Estados, querida, fomentada pelos déspotas, e deste modo
desaparecerão as rivalidades de raças e se consolidarão as nacionalidades tais
como as querem o direito e as necessidades locais [51].
Deus e Povo
Este antigo carbonari propunha
a instauração na Itália de uma republica unitária e democrática,
através da insurreição popular e até pretendia fazer imbuir o patriotismo
italiano de um fervor moral e deísta, bem resumido no lema que adotou : Deus
e Povo. Três anos mais tarde, depois de ser expulso de França e de ter
tentado invadir o Piemonte, quando estava exilado em Berna, funda outro
movimento, a Jovem Europa, visando uma Europa Livre e Unida,
pela congregação de todos os movimentos revolucionários das diversas nações.
Como o próprio reconhece, tinha o projeto de impor à Europa uma unidade
absoluta... quer fundar no século XIX, uma teocracia republicana, um papado
republicano, como antes Carlos V e Filipe II sonhavam uma monarquia universal.
Pensa um sistema de centralização, uma constituição unitária, segundo a qual os
países da Europa não serão mais do que departamentos dum só Estado do qual
Paris será a capital [52].
Uma atitude diversa da
que assumira em escritos anteriores, como em Pensieri sopra uma
Leteratura Europea, quando ainda adotava uma atitude espiritualista e
federalista, advogando a unidade moral da Europa pela república
democrática que deve conduzir à federação dos povos ...pela fusão dos
interesses, pelo progresso do espírito humano, pela necessidade de uma paz duradoura [53].
O agitador italiano
volve-se agora em agitador europeu, procurando congregar todos os movimentos
congéneres. Estabelecido em Londres desde 1837, é daí que chega a propor a
convocatória de um grande congresso europeu, juntando todos os
movimentos republicanos da França, da Polónia, da Alemanha, da Hungria e da
Itália, marcados pelo mesmo ideal, simultaneamente nacionalista e europeísta.
A primavera dos povos
Com a primavera
dos povos de 1848, regressa a Itália, onde dirige a revolta de Nápoles
contra os austríacos, em Março, passando, depois, para a Toscana e para Roma,
onde os seus partidários, em Fevereiro de 1849, proclamaram uma república, com
um triunvirato, por ele participado, que governaria ditatorialmente até ao mês
de Junho, quando as tropas francesas restabeleceram a autoridade temporal do
papa.
Lançado de novo no
exílio londrino, não deixa de promover uma série de revoltas, todas elas
frustradas, em Mântua (1852), Milão (1853) e Génova (1857). Opondo-se à
política de unificação italiana promovida pelo Piemonte e muito particularmente
à aliança que Cavour promoveu com Napoleão III, sofreu um profundo desaire
quando o principal dos seus partidários, Garibaldi, tratou de se aliar ao
processo monárquico da unificação.
A partir de então,
propõe que se separem os destinos da pátria dos destinos da monarquia,
visando transformar a nação num corpo armado, estreitamente ligado a todos os
povos livres, para apressar a vitória da unidade republicana em Itália [54]. A este projeto se unem muitos revolucionários
franceses, espanhóis, portugueses e boémios, visando, conforme as palavras de
Mazzini, que o estremecimento momentâneo havia de transformar-se, vinte
e quatro horas depois, no hurrah! de uma insurreição medonha [55].
Em 1870 ainda desembarca
clandestinamente na Sicília, mas acaba por ser preso. Vai acabar por viver os
seus últimos dias no exílio suíço, em Lugano, mas, em 1872, fazendo-se passar
por um inglês, entra em Itália, onde acaba por morrer em Piza.
Como comenta um seu
contemporâneo, Cantu, caíram-lhe em sorte agentes indignos; e um chefe
de partido muita vez parece dirigir os seus subordinados, mas obedece-lhes.
Como Hamlet, cujas ideias se não coadunavam com os factos, Mazzini queixava-se
de tudo e de todos; inimigo da omnipotência do Estado, inimigo da política de
expedientes maquiavélicos, das teorias teocráticas que fazem recuara até às
trevas da idade média, restava um vago Deus e Povo. Ele queria
acção, mas fazia-a consistir na insurreição, pensando chegar à democracia pelos
caminhos da demagogia. Buscou aproveitar-se dos tumultos que ele não tinha
promovido, em Milão, em Palermo e em Roma; teve a presunção de querer inspirar
a política da Europa inteira; e se bem nunca se ligou com os monárquicos,
contudo transigia com os príncipes, como representantes da nação, e ofereceu a
Itália a Carlos Alberto, a Pio XI, e ultimamente a bismarck (Novembro de 1867),
contanto que favorecesse cada um deles as ideias que ele espalhasse[56].
Terceira Roma
É, aliás, este mesmo
Mazzini que faz renascer as teses imperialistas da Terceira Roma, acreditando
que depois da Roma dos Imperadores e da Roma dos Papas teria
de surgir a Roma do Povo. Assim, em 1871, propõe que a Itália
constitua um vasto império colonial no Mediterrâneo: o estandarte
romano tremulou sobre essas terras nos dias em que, após a queda de Cartago, o
Mediterrâneo foi denominado o nosso mar. Fomos senhores de toda essa região até
ao século V. Mussolini, militante socialista, mais não faz do que dar
continuidade a esse sonho.
República Ocidental
Augusto Comte
(1798-1857), no Catecismo Positivista de 1848, vai depois
propor a criação de uma República Ocidental, com as cinco grandes
potências do Ocidente (França, Alemanha, Grã-Bretanha, Itália e Espanha),
associadas às nações escandinavas, à Holanda, á Bélgica, a Portugal e à Grécia,
um conjunto que, depois, se estenderia a doze outros países considerados coloniais,
nos quais incluía os Estados Unidos da América e várias nações sul-americanas.
Regime espiritual comum
Haveria na
grande República ocidental uma divisão em sessenta repúblicas
independentes, que só terão verdadeiramente em comum o regime espiritual [57].
Nela jamais
surgirá autoridade temporal capaz de mandar em toda a parte, como o inútil
imperador da Idade Média, que não passou, em relação ao sistema católico, de um
resquício perturbador, empiricamente emanado da ordem romana [58].
Ordem e progresso
Cada nação conservaria a
respetiva bandeira, mas em cada uma delas se inscreveriam as divisas
positivistas, de um lado, ordem e progresso, do outro viver
para outrem. Surgia assim um projeto confederativo, dirigido por um comité,
onde inicialmente estariam oito franceses, sete ingleses, seis alemães, cinco
italianos e quatro espanhóis. A capital seria em Paris, mas quando a
confederação fosse alargada, o centro passaria para Constantinopla. Haveria uma
marinha e uma moeda comuns e uma das espécies teria até o nome de Carlos
Magno.
O sentimento nacional
Comte considerava, no
entanto, que o sentimento nacional ainda constituía o
verdadeiro intermediário entre a afeição doméstica e o amor universal.
Nesta base, referia expressamente que Portugal e a Irlanda, se não
surgir nestes qualquer divisão, formarão no começo do próximo século as maiores
repúblicas do ocidente (p. 203).
A santa noção de pátria
A sua intenção era a de restringir
a santa noção de Pátria, que se tornou demasiado vaga e consequentemente quase
estéril entre os modernos, dada a exorbitante extensão dos Estados ocidentais.
Considera que uma população de um a três milhões de habitantes
constitui a extensão que convém aos Estados verdadeiramente livres, pois só
assim se hão de classificar aquelas cujas partes estão todas reunidas sem
qualquer violência pelo sentimento espontâneo duma ativa solidariedade. O
prolongamento da paz ocidental, ao dissipar os receios sérios de invasão
exterior, e mesmo de coligação retrógrada, não tardará em fazer sentir por todo
o lado a necessidade de dissolver pacificamente certas agregações fictícias, e
definitivamente desprovidas de verdadeiro interesse. Assim, prevê que antes
do final do século XIX, a República Francesa achar-se-á livremente decomposta
em dezassete repúblicas independentes, cada uma delas formada por cinco
departamentos atuais (pgs. 202 e 203)
Republicanismo
O posterior republicanismo,
mais ou menos sustentado nas maçonarias, chegou a estruturar a reivindicação de
uns Estados Unidos da Europa, invocando a ideia de pacifismo e
de liberdade e tentando mobilizar o próprio princípio
das nacionalidades, já depois da primavera dos povos de
1848. A corrente republicanista é tão heterogénea quanto os
adversários que procurava combater. Se perante o belicismo da
Prússia clama pelo pacifismo, não deixa de ser guerrilheiro com
Garibaldi.
Estados Unidos da Europa
A organização mais
consequente que gerou foi a chamada Liga Internacional da Paz e da
Liberdade, nascida 1867, que publicou o jornal Os Estados Unidos da
Europa, dirigido por Charles Lemmonier. A organização, marcada pelas ideias
de Mazzini, girava em torno dos chamados Congressos da Paz e da
Liberdade que tiveram reuniões em Génova (1867), em Berna (1868) e em
Lausanne (1869), mobilizando personalidades como Garibaldi e Victor Hugo.
Congressos da Paz e
Liberdade
Foi em Setembro de 1867
que reuniu em Génova o Congresso da Paz e da Liberdade sob a
presidência de Garibaldi, donde vai surgir a Liga Internacional da Paz
e da Liberdade que tinha como divisa si vis pacem, para
libertatem. Aí se proclamou, pouco depois de Bismarck ter invadido o
Luxemburgo:
De novo, o
cosmopolitismo
Considerando que os
grandes Estados da Europa se têm mostrado incapazes de conservar a paz, assim
como de manter o desenvolvimento regular de todas as forças morais e materiais
da sociedade moderna;
Considerando mais que a
existência e o aumento dos exércitos permanentes constituindo a guerra num
estado latente, são incompatíveis com a liberdade e o bem-estar de todas as
classes da sociedade e muito principalmente com a classe operária;
O Congresso, desejoso de
fundar a paz, a democracia e a liberdade:
Decide:
Que seja fundada uma
liga da paz e da liberdade, verdadeira fundação cosmopolita;
Que seja dever para cada
membro desta liga o esclarecimento da opinião pública acerca da verdadeira
natureza dos governos, executores da vontade geral, e acerca dos meios de
extinguir a ignorância e os prejuízos que hoje alimentam as diferentes guerras;
Que se envidem todos os
esforços possíveis a fim de se operar a substituição dos exércitos permanentes
pelas milícias nacionais;
Que se ponha em plena
evidência a situação das classes laboriosas e deserdadas, a fim de que o bem
estar individual e geral venha a consolidar a liberdade política dos cidadãos;
Além disto instituirá o
congresso ainda um centro permanente, cujo órgão será um jornal franco-alemão,
debaixo do seguinte título: Os Estados Unidos da Europa[1]
É a partir deste
movimento que emerge o jornal Les États Unis de l'Europe que
vem a ser dirigido por Charles Lemmonier. Em 1867, apenas são publicados dois
números de divulgação, em Novembro e Dezembro de 1867; volta a ser publicado em
Janeiro de 1869 (em Berna), mas sofre nova interrupção de nove meses, até que,
em 1870, se instala em Génova.
Congresso de Berna
O segundo Congresso
decorre em Berna, em Setembro de 1868. Reafirmando-se os princípios anteriores,
acrescenta-se a ideia da separação absoluta entre o Estado e a Igreja e
propõe-se a constituição de uma federação republicana europeia, ao mesmo tempo
que se pugna pelo reconhecimento dos direitos políticos das mulheres.
Congresso de Lausanne
O terceiro Congresso é
em Lausanne, Setembro de 1869. Decorre sob a presidência honorária de Victor
Hugo e chega às seguintes conclusões: considerando que a causa
fundamental e permanente do estado de guerra no qual se acha mergulhada a
Europa, é a completa ausência de uma instituição jurídica internacional; considerando
que a primeira condição para que um tribunal internacional substitua por
decisões jurídicas as soluções que a guerra e a diplomacia em vão pedem à força
e à astúcia, é que esse tribunal seja diretamente eleito e instituído pelo
povo, tendo, por regra, as decisões das leis internacionais, votadas por esses
mesmos povos; considerando que, qualquer que seja a autoridade dum tribunal, a
execução das suas decisões, para ser efetiva, deve ser sancionada por uma força
coercitiva; considerando que uma tal força não pode legitimamente existir, a
menos que não seja regulada e constituída pela vontade direta dos povos;
considerando que o conjunto destas três instituições; uma lei internacional, um
tribunal que aplica a lei, e um poder que assegura a execução das decisões
deste tribunal, constitui um governo; o congresso decide: que o único meio de
fundar a paz na Europa é a formação de uma federação de povos sob a denominação
de Estados Unidos da Europa. Que o governo desta união deve ser republicano e
federativo, isto é, filho da soberania do povo e da autonomia de cada um dos
membros da confederação. Que a constituição deste governo deve ser perfectível;
que nenhum povo pode entrar na confederação europeia a menos que não tenha já o
pleno exercício: do sufrágio universal; do direito e votar e rejeitar o
imposto; do direito da paz e da guerra; do direito de concluir ou de ratificar
as alianças políticas ou os tratados de comércio; do direito de aperfeiçoar por
si mesmo a constituição.
Victor Hugo
É neste ambiente que
desponta Vítor Hugo (1802-1885), o turbilhão romântico, acirrado pela primavera
dos povos de 1848, que vem falar tanto nos Estados Unidos da
Europa como na Europa Nação, ao mesmo tempo que procura
conciliar alemães e franceses. Já em 1849, presidindo a um congresso da paz,
organizado por Mazzini, declarara: Virá um dia em que, tu França, tu
Rússia, tu Itália, tu Inglaterra, tu Alemanha, todas vós, nações do continente,
sem perder as vossas qualidades distintas, vos fundireis numa unidade superior
e constituireis a fraternidade europeia, da mesma maneira que a Bretanha, a
Borgonha, a Lorena, a Alsácia se fundiram com a França.
Sufrágio universal
Virá um dia onde as
balas e as bombas serão substituídas pelos votos, pelo sufrágio universal dos
povos, pela venerável arbitragem de um grande Senado soberano que estará para a
Europa, como o Parlamento está para a Inglaterra, como a Dieta está para a
Alemanha, como a Assembleia Legislativa está para a França.
Não mais fronteiras! Que
o Reno seja de todos! Sejamos a mesma república, sejamos os Estados Unidos da
Europa, sejamos a federação continental, sejamos a liberdade europeia, sejamos
a paz universal!
Dois anos depois, num
discurso feito no parlamento francês, em 17 de Julho de 1851, quando, sob a
Segunda República, presidida por Luís-Napoleão, se discutia a revisão
constitucional, proclamava: Sim! Foi o povo francês que primeiro
colocou num granito indestrutível e no meio do velho continente monárquico a
pedra do grande edifício que um dia se há de chamar-se Estados Unidos da Europa[59].
Num artigo, intitulado O
Futuro, de 1867, vem depois dizer: No século XX
existirá uma nação extraordinária. Esta nação será grande, o que a não impedirá
de ser livre. Será ilustre, rica, pensadora, pacífica e cordial para o resto da
humanidade... Esta nação terá Paris como capital e deixará de se chamar França
para se chamar Europa. No século XX chamar-se-á Europa e, nos séculos
seguintes, mais modificada ainda, chamar-se-á Humanidade
1870-1871: o partido da
revolução-civilização
Em 14 de Julho de 1870, três dias antes de se iniciar a guerra franco-prussiana, semeava em Haute-Ville o carvalho dos Estados Unidos da Europa. Depois da derrota francesa, quando a assembleia nacional em Bordéus se reunia, eis Victor Hugo propondo à Alemanha vitoriosa uma fusão: Não mais fronteiras! Que o Reno seja de todos! Sejamos a mesma república, sejamos os Estados Unidos da Europa, sejamos a federação continental, sejamos a liberdade europeia, sejamos a paz universal! Na sua casa da Place des Vosges deixou mesmo uma nota escrita pelo seu próprio punho: eu represento um partido que não existe ainda. O partido da Revolução-Civilização. Este partido edificará o século XX. E fará nascer, primeiro, os Estados Unidos da Europa. Depois, os Estados Unidos do Mundo[60].
Victor Hugo, o
europeísta, é o romântico apaixonado pela Alemanha, o mesmo que, em 1842,
proclamava: se não fosse francês gostaria de ser alemão [61]. Para ele, França e Alemanha são de facto a
Europa. A Alemanha é o coração; a França, a cabeça. Alemanha e França são em
essência a civilização; a Alemanha sente, a França pensa; coração e cérebro
formaram o homem civilizado ... Tiveram a mesma origem; lutaram juntas contra
os romanos; foram irmãs em dias passados, são irmãs agora, serão irmãs em
tempos que virão. Sua formação, também, foi a mesma. Não são nações isoladas;
não adquiriram as suas possessões por conquista; são filhas verdadeiras do solo
europeu.
A aliança
franco-germânica
Hugo, com efeito, faz
parte daquela corrente francesa que sofreu os efeitos de 1815 e que, mantendo o complexo
de Waterloo, detestava os dois líderes da Europa antinapoleónica, a
Grã-Bretanha e a Rússia: Hoje, como há duzentos anos, há duas poderosas
nações mirando a Europa com olhos cobiçosos. O espírito guerreiro, de violência
e conquista, está ainda solto no Leste; o espírito de ganância, de astúcia e
aventura continua solto no Oeste. Parecem os dois gigantes ter-se movido um
pouco mis para norte, como se para pegar o continente um pouco mais acima. A
Rússia tomou o lugar da Turquia e a Inglaterra substituiu a Espanha. A Inglaterra
é Cartago contra Roma, é o antigo espírito púnico que durante tanto
tempo lutou contra a civilização na antiguidade. O espírito púnico é o espírito
do comércio ... o espírito da ganância, o espírito do egoísmo. A Inglaterra
acabará sendo esmagada pela formidável oposição do universos, ou acabará
compreendendo que o reino de Cartago passou.
Charles Lemmonier
Desta geração, merece
também destaque Charles Lemonnier que, em 1872, publica um livro intitulado Les
États Unis de l'Europe, depressa traduzido para português por Magalhães
Lima, em 1874[62]. Marcado pelas ideias de Saint-Simon,
de quem, em 1859, publicara umas obras escolhidas, aparece em 1867 como um dos
principais fundadores da Liga Internacional da Paz e da Liberdade. Em 1869 já
publica uma memória intitulada Determinar as bases de uma organização
federal da Europa.
Victor Hugo atualizando
Kant
Segundo Lemmonier, a
ideia de Estados Unidos da Europa aparece como a continuação da
revolução, não a francesa, mas a europeia de 1789 a 1791. Ele próprio
a considera como uma profecia, transformada já, em programa e em
fórmula[63].
Coloca o discurso de
Victor Hugo de 17 de Julho de 1851 como o momento em que a fórmula entrou
na língua política dos Estados[64], salientando que em
três palavras Victor Hugo resumiu Kant[65].
Para ele, o
princípio sobre o qual se baseia a fundação dos Estados Unidos da Europa é o
mesmo princípio da republica o qual não é outra coisa do que a aplicação da
moral[66]. Contra as dinastias que são
por natureza odientas, egoístas, desconfiadas, hostis[67].
Mas para a realização da nossa ideia não é mister destruir as
nacionalidades, nem tão pouco enfraquecer o patriotismo. A conceção de uma
federação supõe, por si, uma pluralidade de nações e uma diversidade entre os
Estados[68].
No plano prático propõe
que se siga o modelo norte-americano como um governo geral europeu, ao
qual seria confiada a administração dos interesses gerais e comuns da federação,
com uma única organização militar e com uma perfeita
união económica, social e política, com livre troca e absoluta
liberdade comercial, com nada de direitos aduaneiros, a fim de
se propiciar um campo vasto à oferta e à procura[69].
Mas contrariando a Santa
Aliança dos reis que apenas pôde sustentar-se pela força e
pela manha, defende que não basta a adesão dos governos. É mister
que seja explícito e formal o voto dos cidadãos[70].
O socialismo
saint-simoniano
Fora dos quadros do
positivismo e do republicanismo, alguns autores socialistas, herdeiros de
Saint-Simon e de Fourier, não deixam de clamar pela unidade europeia. J.-P.
Buchez (1796-1865) mistura as ideias de socialismo cristão com o espírito
europeu, autor de Essai d'un Traité Complet de Philosophie au point de
vue du Catholicisme et du Progrès, de 1838-1840, chegara mesmo a fundar em
Paris, no ano de 1831, o jornal Européen[71].
Victor Considérant, discípulo de Fourier, em La Dernière Guerre et la
Paix Définitive en Europe, de 1850, propõe a instauração de uma federação
europeia, através de um Estado unitário e centralizado que respeitaria o direito
das nacionalidades[72]. Também o
saint-simonista G. d'Eichtal navega nas mesmas águas, publicando, em 1840, uma
brochura intitulada De l'Unité Européenne.
O federalismo de
Proudhon
Contudo, a partir de
Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), principalmente com a publicação da obra Du
Principe Fédératif, em 1863, eis que, misturando-se o comunalismo, o
mutualismo e o federalismo, se gera uma nova nebulosa criativa do socialismo,
onde o anarquismo anti-estatista aparece compensado pela solidarismo. A partir
de então, o federalismo é elevado à categoria de conceção do mundo e da vida,
contestando-se, a partir da esquerda, a ideia de um modelo unitário de Estado,
sempre defendido pelos jacobinismos, e profetizando-se que o século XX
abrirá a era dos federalismos. A partir de então, eis que na Europa
pós-revolucionária começa a esboçar-se um movimento federalista contrário às
perspetivas do republicanismo defensor do Estado unitário democrático, dotado
de uma soberania una e indivisível. Começa então a perceber-se que se
todo o federalismo é democrático, nem tudo o que é democrático é federalista.
Que pode haver uma forma de democracia que ultrapassa o dogma da relação direta
entre o indivíduo e o centro político, reclamando a vivacidade dos corpos
intermédios.
Contra o centralismo
jacobino
Proudhon chega mesmo a
considerar o Estado unitário como simples máquina política,
defendendo que a mesma deveria ser superada pela eliminação do centralismo, do
unitarismo e do soberanismo, em que se teriam enredado tanto os modelos do rei
absoluto como do povo absoluto, que não admitiriam a
existência, no espaço político, dos poderes periféricos, territoriais ou
grupais. Com efeito, tanto o centralismo democrático, de matriz jacobina, como
o centralismo que impulsionava os estados-impérios não
admitiam o pluralismo dos chamados corpos intermediários.
Socialismo, corporatismo
e federalismo inseriam-se assim na mesma perspetiva do político, propondo uma
reorganização simultânea tanto no plano internacional como no plano interno,
isto é, de baixo para cima, pelo renascimento da vida local e pela
solidariedade dos grupos não públicos ou não
governamentais, como hoje se diz.
Comunitarismo e
mutualismo
A partir de então, o
comunalismo e o mutualismo, integram-se naquilo que poderá ser considerado como
federalismo integral ou de associação, movimento que foi, aliás, acompanhado
pela emergência de movimentos culturais regionalistas. Na própria França ganhou-se
consciência de que a Revolução iniciada em 1789 e a posterior administração
napoleónica tinham uniformizado e empobrecido a anterior variedade dos grupos
infra-estatais.
Contra o jacobinismo
De recordar que os
primeiros textos da Convenção foram redigidos em seis línguas e que, ainda em
1900, cerca de metade dos franceses falavam em casa a sua língua local, apesar
do patois ter sido severamente proibido na escola oficial. O
aparelho de poder da França democrática, que tinha esmagado a Vendeia, construiu
um novo modelo de Estado esmagando nações e regiões, através de uma República
de mestres-escolas e de um exército de conscrição.
Vejamos agora algumas
das proclamações federalistas de Proudhon:
Federação, do latim foedus... quer dizer
pacto, contrato, convenção, aliança, etc., é uma convenção, pela qual um ou
vários chefes de família, uma ou várias comunas, ou vários grupos de comunas ou
Estados se obrigam, reciprocamente e igualmente, uns para com outros, para um
ou vários objectivos particulares, cuja responsabilidade pertence, neste caso
especial, exclusivamente aos delegados da federação. Neste sistema, os
contratantes, chefes de família, comunas, cantões, províncias ou Estados, não
se obrigam só bilateralmente e comutativamente, uns para com outros - eles
garantem para si, formando o pacto, mais liberdades ... que não abandonam[73].
O sistema federativo é
aplicável a todas as nações e a todas as épocas porque a humanidade é
progressiva em todas as suas gerações e em todas as suas raças, e a política da
federação que é, por excelência, a política do progresso, consiste em tratar
cada população ... segundo um regime de autoridade e de centralização
decrescentes, correspondente ao estado dos espíritos e aos costumes.
O essencial nessa via
seria partir de pequenos grupos soberanos, unindo-os pelo pacto da federação.
Depois, organizar em cada Estado federado o governo segundo a lei de
separação dos órgãos - isto é , separar no poder tudo o que pode ser separado,
definir tudo o que pode ser definido, distribuir entre órgãos ou funcionários
diferentes tudo o que terá sido separado e definido; não deixar nada na
indivisão; rodear a administração de todas as condições de publicidade e de
controlo. Finalmente, em lugar de absorver os Estados federados ou
autoridades provinciais e municipais numa autoridade central, reduzir as
atribuições destas a um simples papel de iniciativa geral, de garantia mútua e
de vigilância, cujos decretos não recebem a sua execução senão com o visa dos
governos confederados e por agentes às suas ordens...
Assim, sublinha que não
é apenas entre sete ou oito eleitos, saídos de uma maioria parlamentar, e
criticados por uma maioria que se lhe opõe, que deve ser repartido o governo de
um país, é entre as províncias e as comunas: sem isso, a vida política abandona
as extremidades para o centro, e o marasmo ganha a nação tornando-a hidrocéfala.
Nestes termos, profetiza
que o século XX abrirá a era das federações, ou a humanidade recomeçará
um purgatório de mil anos[74]. E isto porque o
sistema federativo teria superioridade moral ... sobre o sistema
unitário, submetido a todos os inconvenientes e a todos os vícios do
indefinido, do limitado e do absoluto, do ideal.
A Europa seria ainda grande
demais para uma confederação única: ela não poderá formar senão uma
confederação de confederações. O primeiro passo a dar na reforma do direito
público europeu, o restabelecimento das confederações italiana, grega, batava,
escandinava e danubiana, prelúdio da descentralização dos grandes Estados e, de
seguida, pelo desarmamento geral.
Então, toda a
nacionalidade regressaria à liberdade; então, concretizar-se-ia a ideia dum
equilíbrio europeu, previsto por todos os publicistas e homens de Estado, mas impossível
de obter com grandes potências de constituição unitária.
Foi muitas vezes
alvitrada, entre os democratas de França, uma confederação europeia, ou seja,
os Estados Unidos da Europa. Sob esta designação, parece nunca se ter
compreendido outra coisa que não fosse uma aliança de todos os Estados, grandes
e pequenos, existentes atualmente na Europa, sob a presidência permanente de um
Congresso. Subentendeu-se que cada Estado conservaria a forma de governo que
melhor lhe conviesse. Ora, dispondo cada Estado, no Congresso, dum número de
vozes proporcional à sua população e ao seu território, os pequenos Estados
encontrar-se-iam, dentro em breve, nesta pretensa Confederação, enfeudados aos
grandes; ainda mais: se fosse possível que esta nova Santa Aliança pudesse ser
animada dum princípio de evolução coletiva, vê-la-íamos prontamente degenerar,
após uma conflagração interior, numa potência única, ou numa grande monarquia
europeia. Uma semelhante federação não seria pois senão uma cilada ou não teria
nenhum sentido[75]
As nacionalidades serão
tanto melhor asseguradas quanto o princípio federativo tiver recebido uma
aplicação mais completa...
O sentimento da pátria é
como o da família, da posse territorial, da associação industrial; um elemento
indestrutível da consciência dos povos [76]
Após a Revolução
Francesa, um novo espírito se ergueu no mundo. A Liberdade colocou-se diante do
Estado; generalizando-se rapidamente a sua ideia, compreendeu-se que ela não
era somente um facto para o indivíduo, mas que devia também existir no grupo. À
liberdade individual, quis juntar-se a liberdade associativa, municipal,
cantonal, nacional; de modo que a sociedade moderna se encontra colocada ao
mesmo tempo sob uma lei de unidade e uma lei de divergência, obedecendo ao
mesmo tempo a um movimento centrípeto e a um movimento centrífugo. O resultado
deste dualismo, antipático para os homens de Estado, e que as massas pouco
compreendem, é fazer com que, um dia, pela federação das forças livres e pela
descentralização da Autoridade, todos os Estados, grandes e pequenos, reúnam as
vantagens da unidade e da liberdade, da economia e do poder, do espírito
cosmopolita e do sentimento patriótico[77]
O contrato de federação
- tendo por objetivo, em termos gerais, garantir aos Estados confederados a sua
soberania, o seu território, a liberdade dos seus cidadãos; de solucionar as
suas questões; de providenciar, com medidas gerais, a tudo o que diz respeito à
segurança e à prosperidade comum ... - é essencialmente restrito.
Se fosse de outro modo,
a autoridade federal, de simples mandatária e com a função subordinada que deve
ter, seria considerada como preponderante; em vez de estar limitada a um
serviço especial, pretenderia abarcar toda a atividade e toda a iniciativa; os
Estados confederados seriam convertidos em prefeituras, intendências, sucursais
ou administrações. O corpo político, assim transformado, poderia chamar-se
república, democracia ou tudo o que lhes agradar: já não seria um Estado
constituído na plenitude das suas autonomias, já não seria uma Confederação...
Em resumo: o sistema federativo é o oposto da hierarquia ou centralização
administrativa e governamental ... A sua lei fundamental, característica, é
esta: na federação, os atributos da autoridade central especializam-se e
restringem-se, diminuem de número, de dependência, à medida que a Confederação
se desenvolve, pelo acesso de novos Estados[78]
O federalismo
conservador e católico
Sublinhe-se que, antes
de Proudhon, o federalismo assumia uma feição conservadora, ligando-se ao
organicismo romântico católico, principalmente aos defensores do Sacro-Império.
Assim, foi Joseph Görres (1776-1848) que o trouxe à contemporaneidade, propondo-o
como algo de diverso do contrato social, como uma espécie de consensus tácito
entre os governos e as populações, cabendo ao Estado apenas dar
abrigo ao autonomismo das regiões, onde as forças vivas, os
costumes, as crenças e as tradições, constituiriam uma alma popular que
a casa comum do Estado deveria respeitar[79].
Mas, depois de Proudhon,
o federalismo não passou a ser necessariamente socialista ou anarquista.
O tradicionalismo e o
catolicismo continuaram a pugnar por ele, nomeadamente quando renasce o próprio
jusnaturalismo católico pelo culto das teses de Francisco de Vitória e
Francisco Suárez.
Pi y Margal e o
republicanismo federalista
Surge até um
republicanismo federalista que renuncia ao unitarismo e ao centralismo, de que
é figurante marcante um Francisco Pi y Margall (1824-1901), que teve
importantes reflexos em Portugal.
Francisco Pi y Margall
(1824-1901), natural de Barcelona, doutor em direito, depois de ter sido editor
das obras de Juan Mariana, publicou em 1854 La Reacción y la Revolución,
onde foi precursor de muitas das teses federalistas de Proudhon. Exilado em
Paris, desde 1866, foi eleito, em 1869, deputado às Constituintes, onde emerge
como o principal teórico do republicanismo federativo.
Membro desde 1873 do
governo republicano chega a ser presidente do executivo republicano. Nesse
curto período tem de enfrentar não só o movimento cantonalista como a crise de
Cuba, defendendo a aplicação do federalismo a esse território das Antilhas.
Derrubado em 3 de Janeiro de 1874.
Bluntschli
Mas nem todos os
defensores do federalismo na segunda metade do século XIX assumem esta carga de
militantismo esquerdista. O jurista suíço J. K. Bluntschli (1808-1881), que era
professor na Alemanha, que defende uma comunidade europeia (europäische
Statengemeinschaft), pela instauração de um Estado federal europeu, de
estrutura flexível
Frantz
Constantin Frantz
(1817-1891), por seu lado, é defensor de um federalismo hegemónico,
acentuando a necessidade do federalismo no plano internacional ser acompanhado
de idêntico federalismo no plano interno.
Contudo Frantz advoga a
primazia da Alemanha no processo, não só porque esta nação estaria para o
federalismo, assim como a França está para o centralismo, como pela
circunstância do génio germânico ter uma missão universal.
Ele, que se opunha
àquilo que considerava depreciativamente como a maquina unificadora
prussiana, chega a propor que, para a construção europeia, visualizada como
uma confederação de federações primárias, se comece por um sistema coordenado
de três federações: uma, da Alemanha ocidental e dos países de língua alemã que
lhe são fronteiros; outra, da Alemanha oriental e dos países bálticos; a
terceira, com a Áustria e os países danubianos.
A França não poderia
entrar por ser centralista. A Rússia era excluída por ser imperialista. E a
Grã-Bretanha, por ser uma ilha, apenas daria a respetiva amizade. Seguir-se-ia
uma federação latina, que designa como romana[80].
Falta de europeístas
portugueses
Quem percorrer as
histórias da ideia de Europa com mais autoridade, não deteta personalidades
portuguesas, na habitual lista que vai de Pierre Dubois a Jean Monnet e que
passa por franceses como Sully, Crucé, Saint-Pierre, Saint-Simon, Victor Hugo,
Herriot e Briand, por alemães como Leibniz e Kant, por ingleses como Penn,
Bentham e Churchill ou por checos, como Podiebrad ou Comenius.
Aliás, nesse mesmo
conjunto, também não se vislumbra rasto de espanhóis e de outros sulistas ou
mediterrânicos, à exceção de um outro poeta ou de alguns intelectuais do
exílio, interno ou externo.
Nenhum português também
aparece no originário movimento pan-europeu, na resistência europeísta
anti-hitleriana, ou nos congressos federalistas ou unionistas do pós-guerra,
sementes donde brotaram os chamados pioneiros da Europa
comunitária.
Mas, se formos um pouco
mais longe, também poucas vezes encontraremos portugueses como atores, mesmo
que secundários, nos esforços de estabelecimento do equilíbrio europeu,
paralelos às guerras iluministas, a não ser nos bastidores dos congressos de
Vestefália e de Utreque.
Apenas no Congresso de
Viena de 1815 e nas negociações da Paz de Versalhes, posteriores a 1918,
detetamos uma tímida participação portuguesa, pouco proporcional às invasões de
Godoy e Napoleão ou ao nosso esforço no atoleiro da Flandres,
durante a Grande Guerra.
Mas, se em termos de
participação criativa, como protagonistas ou atores secundários, não estivemos
no centro das modernidades da Europa, eis que os efeitos
expansivos das mesmas sempre se fizeram sentir cá dentro, tanto no plano das
coisas materiais, desde a tutela económica à invasão militar, como no plano das
realidades espirituais, com os estrangeirados, progressistas ou
contrarrevolucionários, maçónicos ou anti-maçónicos, todos eles prenhes de um
maniqueísmo decretador do bem e do mal, conforme as luzes exógenas provenientes
dos sítios considerados polidos, civilizados, desenvolvidos, modernizados ou progressistas.
Foi assim nalgumas vagas
do século XVIII, num crescendo que culminou com o drama das invasões francesas.
Não deixou de o ser entre 1820 e 1834, quando nos transformámos em mero reflexo
da longa manus da Santa Aliança ou dos que se lhe opunham.
Voltou a ser assim, depois da Convenção do Gramido e dos informais Gramidos que
nos têm sucedido neste Portugal Contemporâneo que continuamos
a viver.
Almeida Garrett
Como marco do nosso
europeísmo, costuma, contudo, invocar-se a célebre obra de Almeida Garrett, Portugal
na Balança da Europa, editada em Londres, no ano de 1830, onde, em nome da
esperança, se procurava pensar enraízadamente do que tem sido Portugal
e do que ora lhe convém ser na nova ordem de coisas do mundo
civilizado, desejando-se: Oxalá as honradas cãs do antigo
Portugal, se já não é possível remoçá-lo, vivam ao menos em honesta e
respeitada velhice; nem por impiedade de seus filhos o escarneçam desalmados
estrangeiros na segunda infância da decrepitude, desonrado dos seus, insultado
de estranhos, desamparado de todos! Praza a deus que todos, de um impulso, de
um acordo de simultâneo e unido esforço, todos os portugueses, sacrificadas
opiniões, esquecidos ódios, perdoadas injúrias, ponhamos peito e metamos obra à
difícil mas não impossível tarefa de salvar, de reconstituir, a nossa perdida e
desconjuntada pátria, - de reequilibrar enfim Portugal na balança da Europa![81].
Solano Constâncio
Mas outros portugueses
da época foram também pensando a Europa., Solano Constâncio, em 1815, fala-nos
do equilíbrio sonhado da Europa, de uma espécie de código
comum, o qual, apesar de muitas infrações parciais, formava o direito das
gentes em toda a Europa até à época da repartição da Polónia e da revolução da
França, acrescentando que se alguma potência recusa a reconhecer os
princípios salutíferos e protetores da felicidade e da independência das outra
nações, seja essa declarada e tratada como inimigo comum, e se não pudermos
combater com um género de armas, lancemos mão de todos os outros meios de
defender os nossos direitos e interesses contra as suas pretensões [82].
José Máximo da Fonseca
Pinto Rangel
Um tal José Máximo Pinto
da Fonseca Rangel, que, entre Maio de 1823 e Junho de 1824, foi Ministro da
Guerra, editou, logo em 1821, um sugestivo Projecto de Guerra Contra as
Guerras, ou da Paz Permanente Offerecido aos Chefes das Nações Europeias,
onde propunha que as principais potências europeias, reunidas em Congresso,
celebrassem um Pacto Imperial, onde não só renunciariam à guerra
como também se comprometeriam na resolução pacífica dos conflitos, ao mesmo
tempo em que se instituía um Conselho Supremo ou Supremo
Tribunal de Justiça, onde cada potência confederada, estaria representada
por dois deputados. As potências confederadas poderiam fazer a guerra defensiva
ou ofensiva contra potências estranhas. Previa-se a existência de uma força
militar permanente[83].
Vicente Ferrer de Neto
Paiva
E, duas décadas depois
de Garrett, Vicente Ferrer de Neto Paiva (1798-1886), na sua Philosophia
do Direito, de 1857, apelava à federação de nações, herdeira
dos Amphictyões da antiga Grécia e dos adeptos da Dieta
germânica, proclamando que seria para desejar, que se
organizasse não digo já a grande associação da humanidade mas uma associação
europeia, procurando tornar uma realidade o que se tem chamado um bello sonho
de alguns Philosophos como o Abbade de St. Pierre, Kant, Rousseau, etc. - a
'paz perpetua': o Direito das Gentes teria um tribunal, que administrasse
justiça entre as nações da Europa decidindo pacificamente as questões que se
originassem à cêrca dos seus direitos. As nações da Grecia, nos tempos antigos,
com a junta dos Amphictyões, as da Alemanha nos modernos, com a Dieta
germanica, e em geral todas as federações de nações, subministram typos para a
organização da grande sociedade da Europa. Os congressos e conferências, que
por vezes se têm reunido, provam, que as nações da Europa tendem para esta
instituição, e que sentem a sua conveniência políticai(292-293).
Bernardino Pinheiro
Continuando esse belo
sonho, eis que, poucos anos depois, nos aparece um Bernardino Pinheiro, com
o seu Ensaio sobre a Organização da Sociedade Universal, de
1859-1860, a defender expressamente uns Estados Unidos da Europa.
António Enes
Década e meia volvida,
chega a vez de António Ennes (1848-1901) que em A Guerra e Democracia,
de 1870, apelava, de novo a uns Estados-Unidos da Europa.
Mas, como dizia Manuel
Laranjeira, em carta a Miguel de Unamuno: A Europa despreza-nos; a
Europa civilizada ignora-nos; a Europa medíocre, burguesa, prática e egoísta
detesta-nos, como se detesta gente sem vergonha e, sobretudo ... sem dinheiro.
Apesar disso ainda há em Portugal muita nobreza moral;
Antero de Quental
Vejamos, agora, alguns
dos reflexos do movimento do federalismo em Portugal, destacando tanto as teses
de Antero Quental (1842-1891) que, em 1872, chega a propor para a península
ibérica uma federação republicano-democrática, como as ideias sobre
a reconstrução federativa, de Oliveira Martins (1845-1894).
Democracia ibérica
Antero de Quental, em Portugal
perante a Revolução da Hespanha. Considerações sobre o Futuro da Política
Portuguesa no Ponto de Vista da Democracia Ibérica, um folheto publicado em
1868, depois de Isabel II ter sido derrubada por Prim, dizia que a
nacionalidade não passava de uma forma passageira e artificial, de um
facto do mundo político e como ele transitório e alterável, que ela não
seria o símbolo único, a forma mais perfeita do sentimento nobre, o
amor da Pátria.
Propunha então que nas
nossas atuais circunstâncias o único ato possível e lógico de verdadeiro
patriotismo seria renegar a nacionalidade Prosas, II,
cit., pp. 81 e 83.
Para ele, as
forças mais moças e inteligentes, os elementos mais generosos da nossa
sociedade estão comprimidas, as asfixiadas por esta forma estreita da velha
nacionalidade. Entre uma coisa e outra é necessário escolher. Ora eu sustento
que, entre as realidades eternas da natureza humana, de um lado e, do outro, a
criação artificiosa e antiquada da política, não há que hesitar. Se não é
possível sermos justos, fortes, nobres, inteligentes senão deixando cair no
abismo da história essa coisa a que se chamou nação portuguesa, caia a nação,
mas sejamos aquilo que nos criou a natureza, sejamos inteligentes, nobres,
fortes, justos, sejamos homens, muito embora deixemos de ser portugueses (81-82).
Era então que ele
advogava um iberismo espiritual, defensor de uma Espanha, não como uma nação,
mas como um aglomerado de elementos justapostos, mas não fundidos,
integrados numa república democrática e federalista. Neste sentido, as
nacionalidades eram consideradas como coisa velha e caduca, como um obstáculo
desgraçado, resto das hostilidades fatais de séculos bárbaros.
Em 1869 ainda advogava
que Portugal está na classe dos povos extintos, como a Grécia: tem
ainda habitadores que mantêm uma nacionalidade in nomine; mas esta utopia,
formada sobre os in-fólios dos cronicões, tem de se desmoronar por si mesma. É
triste, mas é verdade.
No discurso de 27 de
Maio de 1871, integrado nas Conferências Democráticas do Casino Lisbonense[84], Causas da Decadência dos Povos Peninsulares
nos Últimos Três Séculos, falava com nostalgia do tempo medieval, dado que
neste o instinto político de descentralização e federalismo
patenteia-se na multiplicidade de reinos e condados soberanos, em que se divide
a Península, como um protesto e uma vitória dos interesses e energias locais,
contra a unidade uniforme, esmagadora e artificial, acrescentando que esse
espírito não é só independente: é, quanto a época o comportava, singularmente
democrático (ANTERO DE QUENTAL, Textos Doutrinários e
Correspondência, Lisboa, Círculo de Leitores, 1987, edição organizada por
Álvaro Manuel Machado, 1º vol., p. 181).
Terminava, propondo: oponhamos
à monarquia centralizada, uniforme e impotente, a federação republicana de
todos os grupos autonómicos, de todas as vontades soberanas, alargando e
renovando a vida municipal, dando-lhe um caráter radicalmente democrático,
porque só ela é a base e o instrumento natural de todas as reformas práticas,
populares, niveladoras (p. 218).
A República
Refira-se que entre
Março e Maio de 1870 tinha ocorrido a Comuna de Paris e é nesse ambiente que,
em Maio, era editado em Portugal o periódico A República, onde,
para além de Antero, também pontificava Oliveira Martins. A república
é, no Estado, liberdade; nas consciências, moralidade; no trabalho, segurança;
na nação, força e independência. Para todos, riqueza; para todos, igualdade;
para todos, luz. Dois anos depois, quando surgia a Fraternidade
Operária, aconteciam em Portugal as primeiras greves. Nesse mesmo ano, em
10 de Março, o proselitismo de Antero e de Oliveira Martins, juntamente com o
de José Fontana, emitiam novo jornal militante, O Pensamento Social,
ao mesmo tempo que, no Porto, surgia o jornal católico A Palavra.
Contudo, esta primeira
vaga socialista não vai frutificar num país onde se vive uma certa euforia
capitalista. Basta recordar que no ano de 1873, há uma aparente opulência,
manifestada pela fundação de cerca de dois bancos por mês. No ano seguinte, o
estado financeiro continua a ser admirável, graças à grande circulação de
numerário.
Só em 1875 é que podia
fundar-se o Partido Operário Socialista, estruturando-se um
movimento de pensamento que vai levar Costa Goodolphim a editar a obra A
Associação.
A epidemia positivista
Contudo, a ideologia que
vai ser predominante em toda essa geração será o positivismo de Augusto Comte
cujas linhas vulgarizadoras, bem expressas na revista O Positivismo de
Teófilo Braga (1843-1924) e Júlio de Matos, publicada entre 1878 e 1882, vão
ser fundamentais na conformação do nosso movimento republicano.
É também nesse ano de
1878, quando é eleito papa Leão XIII, que Oliveira Martins começa a infletir o
seu pensamento em As Eleições, depois completado pelo Portugal
Contemporâneo de 1881, dois anos antes da morte de Karl Marx.
Como o próprio Antero
vai considerar em 1887, em carta dirigida a Wilhelm Storck, era um tempo em que
vivia num paganismo intelectual requintado, numa religiosidade
falsa e só aparente que não chegaria à essência das coisas.
Era um tempo em que lia Proudhon e Michelet, bem como Hegel, a tal singular
aliança ... do naturalismo hegeliano e do humanitarismo radical francês. E ao
mesmo tempo ... conspirava a favor da União Ibérica, que
seria feita por meio da República Federal, então representada em
Espanha por Castellar, Pi y Margall e a maioria das Cortes Constituintes. O
Iberismo era uma grande ilusão da qual porém só desisti (como de muitas
outras desse tempo) à força de golpes brutais e repetidos da experiência. Tanto
custa a corrigir um certo falso idealismo nas coisas da sociedade! (223).
Uma nova Idade Média
Em 1888, em carta
dirigida a Fernando Leal, considera: parece que estamos num período
análogo ao da dissolução do mundo romano, ao qual se deve seguir uma nova Idade
Média. Quem sabe o que sairá dela, quando lhe soar a hora da sua Renascença? E
talvez que só então valham e tenham utilidade de aplicação as doutrinas dos
filósofos e publicistas de hoje. Foi assim que muitas ideias de Aristóteles e
dos Estóicos só se vieram a realizar e a adquirir valor social no século XV e
XVII!! (319).
Oliveira Martins
Também Oliveira Martins,
na sua Teoria do Socialismo, de 1872, repetindo o que fora semeado
por Proudhon em 1863, ainda proclama a reconstituição federativa do
Estado, mantendo-se nessa senda com a obra Portugal e o Socialismo,
do ano seguinte. Tem alguma razão António Sérgio quando, referindo-se à
primeira destas obras, a qualifica como um ramalhude tentame de
fundamentação filosófica ANTÓNIO SÉRGIO, Sobre o Socialismo de
Oliveira Martins, in Ensaios , VIII, p. 209, salientando
que nas congeminações proudhoniescas, federalismo é tudo. É a unidade
na multiplicidade[85].
Com efeito, conforme as
palavras de Martins, a ideia federal, de foedus, aliança é aquela
que realiza naturalmente a pluralidade dos indivíduos, ligados, pelo pacto
livre da sua consciência, num todo moralmente uno[86].
Consubstanciar-se-ia
aliás no sentimento da liberdade, da dignidade, da solidariedade moral
dos homens, a noção de Justiça [87]. Teria
sido revelado na ideia grega de cidade e na república romana, mantendo-se no
movimento municipal, e nas federações das Províncias Unidas, da Suíça e dos
Estados-Unidos, bem como nos fenómenos sociais das hermandades, em Espanha, dos jacques,
em França e dos anabaptistas na Alemanha.
Antagonismo em vez de
equilíbrio
A federação seria também
o próprio contrário do equilíbrio: uma federação não um equilíbrio.
Equilíbrio pressupõe antagonismo, federação pressupõe harmonia e liberdade.
Equilíbrio é o sistema animal do instinto; federação é o sistema racional da
consciência [88]. Federação é um
ajuste pelo qual um ou mais chefes de família, um ou mais grupos de comunas ou
de Estados, se obrigam reciproca e igualmente uns para com os outros a um ou
mais objetivos particulares, cuja direcção incumbe especialmente aos delegados
da federação[89].
Não tarda que abandone
as perspetivas mutualistas e socialistas, onde mistura o que lera em Ahrens,
com alguma força propagandística proudhoniana, e adopte as linhas fundamentais
do socialismo catedrático e da prática bismarckiana.
Em As Eleições de
1878 já salienta que o Estado saiu do nosso sangue; não é um poder que
se nos impõe, é uma força por nós criada. E no Quadro das
Instituições Primitivas reconhece que a federação ou
anfictionia não bastou jamais para unificar um povo, pois nenhuns homens,
nenhuma classe, desiste dos seus foros sem coação. Para haver unidade é mister
que, pelo caminho da hegemonia se chegue à centralização
O internacionalismo
liberal
Depois da Grande Guerra
de 1914-1918, emerge o europeísmo do internacionalismo liberal, ainda marcado
pelas ilusões da belle époque dos anos vinte, destacando-se os
movimentos livre-cambistas visando uma união económica e aduaneira da Europa,
os ensaios de alianças políticas promovidos por Luigi Eunadi (1874-1961),
Édouard Herriot (1872-1957) ou Aristide Briand (1862-1932), bem como o
movimento pan-europeu de Richard Coudenhove-Kalergi.
Livre-cambismo
Em 1926, junto dos
economistas e meios de negócios, surgiam movimentos livre-cambistas que visavam
criar um grande marcado europeu, a fim de se permitir um desenvolvimento da
produção industrial e um abaixamento dos preços. Foi disso exemplo o movimento para
uma União Económica e Aduaneira Europeia, presidido pelo economista
Charles Gide e depois, continuado por Yves le Trocquer. Aliás, entre 1924 e
1929, viveu-se uma época de grande otimismo económico, surgindo grandes cartéis
internacionais, nomeadamente o da metalurgia e o da potassa. Logo em 1924 foi
estabelecido um acordo entre os produtores de aço franceses e alemães tendo
como fim a limitação da produção, tendo-se formado um cartel internacional em
1926, renovado em 1933, mas que nunca incluiu a Grã-Bretanha, os Estados Unidos
e a URSS. Outro cartéis internacionais, com relativo êxito, foram os dos metais
não ferrosos. O do alumínio, que chegou a agrupar todos os produtores europeus,
não só repartia mercados como até procedia à fixação dos preços. Também o
cobre, o estanho foram abrangidos. No domínio dos produtos químicos, importa
salientar o da potassa, organizado em Dezembro de 1926, entre alemães,
franceses e polacos. Do mesmo modo se procedeu quanto aos corantes e ao azoto.
E o modelo chegou a ser estendido, embora limitadamente, aos transportes
marítimos e a certas indústrias transformadoras, como a das lâmpadas elétricas,
o cimento e o linóleo. Todo este movimento exercitou os processos
de cooperação económica europeia, mas ficou quase sempre limitado a certos
setores da economia onde, em termos nacionais, existia uma forte concentração
de empresas.
Herriot
É neste ambiente que
Édouard Herriot, presidente do Conselho francês chegou a declarar na Assembleia
Nacional de Paris, em discurso de 29 de Janeiro de 1925: mon plus grand
désir est de voir un jour apparaître les États Unis d'Europe.
Era a primeira vez que tal expressão era utilizada por um homem de Estado em
exercício de funções. Também o ministro francês Loucheur, dois anos depois, vem
propor a criação de cartéis europeus do carvão, do aço e dos cereais, organizados
pelos Governos no interesse geral e não apenas para a satisfação do egoísmo dos
produtores.
Coudenhove-Kalergi
Nos anos vinte,
destaca-se, contudo, a ação do movimento pan-europeu. Foi em 1922
que o jovem Conde Richard Coudenhove-Kalergi, de cidadania austríaca antes da
Grande Guerra e, depois de 1919, checoslovaco, antes de, em 1939, se
naturalizar francês, nascido em Tóquio havia 27 anos, de pai austríaco, de
origem holandesa e grega, e de mãe japonesa, apresenta o apelo para a unidade
europeia, intitulado A Questão Europeia, publicado no Neue
Freie Press de Viena.
No ano seguinte, já
publica a obra Pan-Europa, onde defende a necessidade de liderança
da Europa no mundo, considerando que a mesma estava ameaçada tanto pelo
bolchevismo russo como pela dominação económica norte-americano. Neste sentido,
propõe a criação de uns Estados Unidos da Europa, sem a Rússia e sem a
Grã-Bretanha.
Pan-Europa
A forma de união
europeia que propõe, procurava respeitar as soberanias nacionais, dado assentar
num Conselho composto por delegados dos Estados e de uma Assembleia,
com delegados dos parlamentos nacionais, sendo influenciada pelo modelo de
pan-americanismo que, entretanto, tinha sido lançado pela Conferência de
Santiago do Chile de 1922. A Pan-Europa não passava, aliás, de
uma organização regional da Sociedade das Nações, ao lado de outros blocos,
como a América do Norte, a América do Sul, a Commonwealth, a União
Soviética e o Extremo-Oriente, devendo assentar na consolidação das
finanças e da indústria europeia, a fim de se enfrentar a concorrência dos
Estados Unidos.
Consciente da vaga
nacionalista, Kalergi considerava também que importava começar por converter a
classe política, dos governantes aos parlamentares, e os homens de negócios,
não acreditando na possibilidade de ação directa sobre as massas e a opinião
pública em geral.
É a partir de então que
Kalergi promove a criação de uma União Pan-Europeia, com sede
em Viena e secções nacionais em todos os países europeus, inspirando-se em
Giuseppe Mazzini e Cavour, considerando que não são os povos que são
atingidos pela senilidade, é o respectivo sistema político. A transformação
radical deste sistema pode e deve levar à regeneração deste continente[90].
No ano seguinte, com o
secretariado-geral do movimento já instalado no antigo palácio imperial de
Viena, começa a editar-se a revista Pan-Europa, desencadeando-se a
convocação de um I Congresso Pan-Europeu, que vai ter lugar na capital
austríaca, entre 3 a 6 de Outubro de 1926.
O desfil de notáveis é
impressionante, do austríaco Seipel ao o checoslovaco Eduard Benès, do francês
Joseph Caillaux ao alemão Paul Loebe, do italiano Francesco Nitti ao grego
Nicolau Politis, enquanto Aristide Briand passava a ser o presidente de honra
da União Pan-Europeia, que passa a integrar nomes como Konrad
Adenauer, Thomas Mann, Guglielmo Ferrero, Édouard Herriot, Paul Valéry, Paul
Claudel, Ortega y Gasset, Miguel de Unamuno, Salvador Madariaga, Winston
Churchill e George Bernard Shaw.
Daí surge um manifesto
onde pode ler-se: a comunhão de interesses pavimenta o caminho que
conduz à comunidade política. A questão europeia é esta: é concebível que sobre
a pequena quase-ilha europeia vinte e cinco Estados vivam lado a lado em
anarquia internacional sem que tal estado de coisas conduza à mais terrível
catástrofe política, económica e cultural? O futuro da Europa depende da
resposta que seja dada a esta questão. Ele está, pois, entre as mãos dos
europeus. Vivendo em estados democráticos, somos todos corresponsáveis da
política dos nossos governos. Não temos pois o direito de nos limitar à
crítica; temos o dever de contribuir para a realização do nosso destino
político...
Aristide Briand
O segundo grande impulso
europeísta vai ser dado pelo já referido Aristide Briand que, na qualidade de
Presidente do Conselho francês, em 7 de Setembro de 1929, apresenta na
Sociedade das Nações uma formal proposta para a instauração de uma
espécie de laço federal entre os povos da Europa. Briand, que já
exercia as funções de ministro dos negócios estrangeiros desde 1925, estava
fundamentalmente preocupado fundamentalmente com a ultrapassagem do contencioso
franco-alemão, principalmente no tocante à gestão da Renânia e às reparações de
guerra, ensaiava resolver o problema, não de maneira bilateral, mas integrando
a questão num âmbito mais vasto, a multilateralidade de uma organização
europeia.
Tenho-me associado
nestes últimos anos a uma propaganda ativa a favor de uma ideia que tem sido
qualificada como generosa, talvez para se dispensar de a qualificar como
imprudente. Esta ideia, que nasceu há muitos anos, que tem alimentado a
imaginação dos filósofos e dos poetas, que lhes valeu o que pode chamar-se do
sucesso da estima, esta ideia progrediu nos espíritos pelo seu valor próprio.
Ela acabou por aparecer como resposta a uma necessidade. Propagandistas
reuniram-se para a difundir, para a fazer entrar mais adiante no espírito das
nações, e confesso que me encontrei entre estes propagandistas ... Penso que
entre os povos que estão geograficamente agrupados como os povos da Europa,
deve existir uma espécie de laço federal ... É este laço que queria esforçar-me
por estabelecer. Evidentemente que a associação agirá sobretudo no domínio
económico. É a questão mais premente. Creio que pode ter sucesso. Mas também
estou certo que, tanto do ponto de vista político como do ponto de vista
social, o laço federal, sem afetar a soberania de qualquer das nações que
poderão fazer parte de uma tal associação, pode ser benéfico .
A ideia, desde logo
considerada como prematura pelos britânicos e imediatamente
condicionada por Mussolini, à colocação em comum de todas as colónias
europeias, teve apenas como consequência um convite feito, depois do almoço
desse dia, pelos 26 delegados europeus ao próprio Briand, para o mesmo redigir
um memorando que servisse de base para uma consulta geral aos governos.
Mesmo em França, a ideia
não foi entusiaticamente acolhida, contando tanto com uma oposição da direita,
como com algumas reticências da parte dos socialistas. Léon Blum acentuou mesmo
a contradição de propor-se um laço federal, mantendo-se as soberanias
nacionais, e os comunistas logo a taxaram como uma manobra antissoviética. Já
na Alemanha, Gustav Streseman (1878-1929) declarou-se favorável à ideia, mas
logo insistiu na vertente económica, sugerindo a unificação das moedas e a
criação de um selo postal único para toda a Europa. As circunstâncias eram,
entretanto, radicalmente alteradas no mês seguinte, quando se dá início à
chamada grande depressão...
Alexis Léger
O memorando de Briand
vai ser desenvolvido pela pena do secretário-geral do Quai d'Orsay, Alexis
Léger, nome próprio daquele que virá a ser prémio Nobel da literatura, Saint-John-Perse,
num relatório intitulado Sur l'organisation d'un régime d'union
fédérale européen, que era comunicado aos diversos governos europeus, em 1
de Maio de 1930. Aliás o memorando era modesto, visando apenas a criação de uma
agência federal da Sociedade das Nações com o objetivo de se estabelecer
através de uma série de acordos económicos, um mercado comum entre os diversos
povos europeus. Mas, contrariamente ao discurso de Setembro, já encarava a
questão de forma política, ou melhor dizendo, acentuando a vertente
intergovernamental de cooperação política.
Aí pode ler-se que a conceção
da cooperação política europeia como devendo tender para este fim essencial:
uma federação fundada sobre a ideia de união e não de unidade, isto é, bastante
flexível para respeitar a independência e a soberania nacional de cada Estado,
assegurando a todos o benefício da solidariedade coletiva para a regulação das
questões políticas que interessem a esta espécie de comunidade europeia ou à de
um dos seus membros (Uma tal conceção poderá implicar, como consequência, o
desenvolvimento geral para a Europa do sistema de arbitragem e de segurança, e
a extensão progressiva a toda a comunidade europeia da política de garantias
internacionais inauguradas em Lucarno, até à integração dos acordos ou séries
de acordos particulares num sistema mais geral)
Considerava-se também
que qualquer possibilidade de progresso na via da união económica sendo
rigorosamente determinada pela questão da segurança e estando esta mesma
questão intimamente ligada à do progresso realizável na via da união política,
é sobre o plano político que deverá ser primacialmente conduzido o esforço
condutor tendente a dar à Europa a sua estrutura orgânica. Uma ordem inversa
não seria apenas vã, apareceria aos olhos das nações mais fracas como
suscetível de as expor, sem garantia nem compensação, ao risco de uma dominação
política podendo resultar de uma dominação industrial dos Estados mais
fortemente organizados.
Nestes termos,
visionava-se que só depois de estabelecida a estrutura política é que poderia
proceder-se a uma aproximação das economias europeias, através de
uma política aduaneira livre-cambista, conduzindo ao estabelecimento de
um mercado comum para a elevação do bem-estar humano no conjunto dos
territórios da comunidade europeia. Não se trata de modo algum de
realizar peça por peça uma construção ideal respondendo abstratamente a todas
as necessidades lógicas de um vasto esboço de mecanismo federal europeu, mas,
bem pelo contrário, de evitar qualquer ideia feita; importa, antes, uma
vinculação em termos práticos quanto à realização efetiva de um primeiro
sistema de contacto e de solidariedade constantes entre os governos europeus,
com vista à realização em comum de todos os problemas relativos à organização
da paz europeia e do ordenamento racional das forças vitais da Europa[91].
A grande depressão
Em 11 de Setembro do
mesmo ano de 1930, a partir de um livro branco que reunia o memorando e as
respostas dos vários governos europeus, todas vagamente favoráveis, à exceção
da britânica, o mesmo Briand apresentou uma moção à assembleia geral da
Sociedade das Nações. Contudo, o ambiente internacional tinha-se alterado
completamente, com a morte do chefe do governo alemão, Gustav Streseman, em
Outubro de 1929, a quebra da Bolsa de Nova Iorque, no mês seguinte, e a vitória
eleitoral dos nazis em 14 de Setembro de 1930. De todo esse esforço apenas
ficava a criação, em 16 de Setembro, de uma Comissão de Estudos para a
União Europeia, encarregada de elaborar um relatório mais completo, um
grupo de trabalho que, depois de reunir cerca de dez vezes, acabou por
dissolver-se após a morte de Briand em 1932.
Os homens de pensamento
Apesar do fracasso, eis
que a ideia de Europa entrava nos domínios da política. Como observa Max
Beloff, era um gesto, nada mais; mas na história os gestos têm a sua
importância[92]. Um gesto que, contudo, foi
entendido pelo profetismo dos homens de pensamento, gerando uma vasta
literatura que, sem receio, tratou de propor uns Estados Unidos da Europa, com
testemunhos de personalidades como Gaston Riou, Carlos Sforza, Bertrand de
Jouvenel, Benedetto Croce, Julien Benda, Edmund Husserl e muitos outros, que
lançam as bases daquilo que virá a ser o europeísmo da resistência
Em 1928 surgia o livro
de Gaston Riou, Europe ma Patrie, preconizando uma federação
continental europeia, capaz de evitar que o Europa fosse partilhada por um dos
três blocos unificados que a ameaçavam: o russo, o britânico e o americano.
Em 1929, o italiano
Carlo Sforza (1872-1952), então no exílio, publica o livro États Unis
de l'Europe. Fora ministro dos estrangeiros italiano em 1910-1921, e era
embaixador em Paris quando Mussolini tomou o poder e o condenou ao exílio em
1925. O mesmo autor, em 1939, publica em Paris um novo livro sobre a temática
europeísta, Synyhèse de l'Europe. Depois da segunda guerra mundial,
voltou a ser ministro dos estrangeiros no governo de Alcide de Gasperi, entre
1947 e 1951.
Em 1930, Bertrand de
Jouvenel, lança também o seu Vers les États Unis de l'Europe, no
mesmo ano em que surge de Édouard Herriot, o livro Europe, onde volta
a preconizar uma união europeia, no quadro da Sociedade das Nações, mas com a
adesão à mesma da Grã-Bretanha. Neste mesmo ano de 1930, importa referir, para
além da obra de Keyserling, Analyse Spectrale de l'Europe, os
trabalhos do suíço Rappard, Uniting Europe, 1930 e do italiano
Quartara, Gli Stati Uniti d'Europa e del Mondo, 1930.
Em 1932, surge a Storia
d'Europa de Benedetto Croce. Em 1933, surge do inglês Arthur Salter, The
United States of Europe, 1933, bem como de André Rousseaux, L'Art
d'Être Européen. É também nesse ano que se edita, de Julien Benda, Discours
à la Nation Européenne. No ano seguinte, é a vez do italiano A.d'Alia, com Confederazione
Europea. Em 1935, é a célebre conferência de Edmund Husserl, em Viena, A
Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia. Quatro anos depois, é o
americano W. B. Curry, com The Case of Federal Union, 1939. Em
1940, W. I. Jenning, A Federation for Western Europe, 1940, e M. A.
Bingham, The United States of Europe, 1940.
No contexto dos anos trinta,
merecem também especial destaque os movimentos de ideias que trataram de adotar
uma postura personalista e federalista, de
inspiração cristã, rejeitando tanto a velha ordem do internacionalismo liberal
como os modelos comunistas e nazi-fascistas e acentuando a necessidade de uma
terceira via, entre o individualismo e o totalitarismo. Sem dúvida, uma minoria
que teve razão antes do tempo, mas cujas ideias sempre poderiam ter evitado as
carnificinas, os genocídios e todo o cortejo de liquidação de milhões de homens
concretos.
Ordre Nouveau
Logo em 1930 surge o
movimento Ordre Nouveau, com Robert Aron e Arnaud Dandieu, que, em
1931, haviam publicado Le Cancer Américain, ao lado de Denis de
Rougemont, Alexandre Marc, René Dupuis e Daniel Rops, movimento que se assumia
como uma terceira força contra o capitalismo liberal e o capitalismo de
Estado, advogando o federalismo.
Esprit
Depois, em Outubro de
1932, começava a publicar-se a revista Esprit, dirigida por
Emmanuel Mounier. Também Paul Valéry, no seu livro Regards sur le Monde
Actuel, de 1931, aspirava a uma Europa independente, sobretudo face aos
Estados Unidos da América: les misérables européens ont mieux aimer jouer
aux Armagnacs e aos Bourguignons que de prendre sur toute la terre le grand
rôle que les Romains surent prendre et tenir pendant des siècles dans le monde
de leur temps... L'Europe aspire visiblement à être gouvernée para une
commission américaine. Toute sa politique s'y dirige [93].
Veja-se, por exemplo, o
Manifesto de Font-Romeu, que constitui a base de princípios da revista Esprit: qualquer
forma política artificial deve desaparecer, sobretudo se uma mística
artificialmente exaltada lhe vem esconder o vazio. Não podemos portanto admitir
a nação, e menos ainda o nacionalismo, onde esta mística se exaspera, dá à
missão um poderio de expansão, cria a quimera perigosa da missão conquistadora
de um povo. O racismo, cientificamente falso, é um verdadeiro frenesim; é a
última chama da nação tocada pela morte. Mas a nação não é a pátria. Um grupo
de homens procurou, lutou, sofreu e o resultado da sua história comum, é uma
visão particular do mundo. Não se dirige contra os outros, dá e recebe deles; e
talvez esta troca se transforme numa comunidade moral que alargará um dia a
pátria. As verdadeiras unidades geográficas são a região e o Estado. A região
é, em primeiro lugar, um temperamento. Reúne homens que vivem sob um mesmo
clima e que têm hábitos de vida análogos. Mas é também uma estrutura económica.
Corresponde às trocas fáceis. O Estado agrupa as regiões. Ultrapassa em muito o
quadro da nação actual. Corresponde a uma unidade geográfica e a uma verdadeira
civilização espiritual. Por cima destas unidades, deve haver uma federação
mundial com o fim de se fixarem as linhas gerais do plano. Deve também
assegurar a paz entre os Estados e mais ainda organizar uma troca dos valores
morais que eles representam[94].
O socialismo de Amaro do
Sacramento Monteiro
Entre as duas guerras
deste século, também houve alguns portugueses que tentaram a senda europeísta,
não faltando sequer os que, como Amaro do Sacramento Monteiro, em 1931,
reproduziam mimeticamente propostas estrangeiras:
Contamos para a
constituição dos Estados Unidos da Europa com o desenvolvimento latente duma
grande força centrípeta. Esta força precipita irresistivelmente a sua ação. Ela
é já tão robusta, que nenhuma organização, que a desconheça, nos parece viável,
de futuro. E é com os mesmos fatores com que se formaram os Estados modernos,
que nós devemos construir a Europa unificada: a solidariedade económica, a
comunidade de interesses e de cultura, a vizinhança geográfica, a consciência
de grupo. Estes fatores atuam presentemente no sentido duma agregação europeia.
Contamos com a
necessidade urgente dum entendimento económico entre os povos europeus; e esta
necessidade nunca foi tão imperiosamente pregada pelos factos, como agora;
nunca se anteviu as consequências nefastas das divergências europeias, como
agora.
Além disso a ideia dos
Estados Unidos da Europa apoia-se em forças sociais poderosas: os partido
socialista e o proletariado, essencialmente pacifistas, serão as suas molas
propulsoras. Eles já vão criando o ambiente internacional propício, já vão
criando e educando uma opinião pública internacional[95].
Mas entre as duas
guerras mundiais não nos faltaram teóricos de uma profunda portugalidade que
pensaram diretamente a questão europeia com fundura, genialidade e
universalismo.
Na geração do Orfeu,
para além da teoria de Fernando Pessoa sobre os fundamentos da
civilização europeia [96], destaca-se a visão
do Sudoeste de Almada Negreiros, enquanto no grupo do
humanismo laico, surgem as vozes de Santana Dionísio e de Abel Salazar em A
Crise da Europa, de 1942.
Foi durante a Grande
Guerra que Fernando Pessoa, insurgindo-se contra o Kriegsstaat alemão,
procurou determinar a génese daquilo que designava por civilização
europeia, enumerando em sucessivos textos vários princípios, bases ou fundamentos.
A civilização a que
todos pertencemos assenta em quatro fundamentos: a Cultura Grega, a Ordem
Romana, e a Moral Cristã, a Universalidade Moderna, esta última criada pela
Itália, quanto à formação de nacionalidades distintas, que nela primeiro
emergiram em semelhança dos estados-cidades dos gregos e romanos; por Portugal,
pelos descobrimentos, quanto à conversão da simples civilização europeia em
civilização mundial; pela Inglaterra (...) A civilização a que todos
pertencemos - entendendo por "todos" todo o mundo - assenta em três
fundamentos, que a precederam. Esses fundamentos são a Cultura Grega, a Ordem
Romana, e a Moral Cristã. Da Grécia nos vem o espírito e a forma da nossa
cultura. De Roma nos vem o espírito e a forma da nossa política. Da religião de
Cristo nos vem o espírito e a forma da nossa vida interior.
A estes três fundamentos
originais da civilização, primeiro da Europa, depois do mundo inteiro, se
ajuntou, desde o fim da Idade Média e princípio da Renascença, um quarto
fundamento. É difícil de lhe dar um só nome, mas esse nome poderá ser a
Liberdade Europeia, porque os três movimentos criadores que o formaram tendem
todos, ainda que diversamente, para uma libertação do homem. Da Grécia nos vem
o espírito e a forma da nossa cultura. De Roma nos vem o espírito e a forma da
nossa política. Da religião de Cristo nos vem o espírito e a forma da nossa
vida interior.
A estes três fundamentos
originais da civilização, primeiro da Europa, depois do mundo inteiro, se
ajuntou, desde o fim da Idade Média e princípio da Renascença, um quarto
fundamento. É difícil de lhe dar um só nome, mas esse nome poderá ser a
Liberdade Europeia, porque os três movimentos criadores que o formaram tendem
todos, ainda que diversamente, para uma libertação do homem.
O primeiro movimento
começou na Itália e constituiu, através da renovação do espírito grego, na
destruição da fraternidade humana, quer pela formação de nacionalidades, quer
pelo movimento antirromano que, por um lado progressivamente destituiu a língua
latina de língua da humanidade civilizada, e, por outro lado, preparou a
reforma, que haveria de destruir a fraternidade católica da Europa. Assim a
Europa se libertou do excesso de Roma e da Humanidade. É contra a humanidade
que se faz todo o progresso; por isso é reacionário todo o movimento, como o
bolchevista, em que se pretenda introduzir a ideia fruste de humanidade.
Descobrimentos
O segundo movimento
começou em Portugal, e foi o dos Descobrimentos. Pouco importa discutir se tal
ou outro ponto da terra era ou não conhecido antes de o descobrirem os
Portugueses. Os descobrimentos dos Portugueses não valem como descoberta, mas
como sistema. Foi Portugal que primeiro sistematizou a descoberta e revelação
do mundo. Sociologicamente, pois, os descobrimentos (sejam os se espanhóis, de
franceses, de ingleses, ou de quem quer que seja) são todos portugueses.
Historicamente, serão o que forem; a história porém não é nada, senão (não
é mais que) o armazém de factos ou pseudofactos sobre os quais trabalhe a
sociologia[97].
Almada Negreiros
Já para Almada
Negreiros, terminado o Império Romano e emancipados os povos, formam-se
depois as várias nacionalidades e substitui-se a unidade política da Europa da
Roma dos Césares pela unidade política da Europa legítima.
Entregues os povos aos
seus próprios governos, a unidade da Europa está na ligação de todos pela mesma
fé geográfica e telúrica.
Trata-se de formar as
várias civilizações particulares da civilização geral europeia. trata-se de
guardar no todo da Europa o perfil de cada um dos seus particulares.
Mística coletiva
Na Europa de hoje
reproduz-se parecidamente o mesmo que na da Roma dos Césares. Não existe um
poder central, como então, impondo com as suas legiões armadas a obediência ao
César romano, mas há uma força que ultrapassa o poderio das nacionalidades
europeias, uma força que não é localizadamente temporal em nenhuma parte da
Europa, mas que existe, a mais forte de quantos impérios aqui se sucederam: É a
própria força da Europa mais una afinal hoje do que nunca, entregue pela
primeira vez à sua própria responsabilidade total, sem nenhum chefe único da
Europa mas nas mãos de todos os chefes de todas as nacionalidades europeias. É
a força espiritual da Europa que entra em sua própria consciência. É esta
consciência da unidade espiritual da Europa que faz exigir de cada
nacionalidade o superlativo da sua evidência telúrica, que faz ir cada povo até
às profundezas místicas dos seu próprio barbarismo d'origem, como se o mais
estranho poder e o mais sobrenatural intimasse cada nacionalidade a esclarecer
toda a essência do seu próprio mistério, como se tratasse de uma questão a
prazo, de vida ou de morte para cada nacionalidade.
A unidade espiritual da
Europa
A unidade espiritual da
Europa entra hoje na sua maioridade. Os povos já não terão por inimigos o
estrangeiro que lhes justifique as lutas pela independência. Hoje a
independência dos povos assenta sobre si-mesmos, adentro das fronteiras, corre
mais perigos e tem menos inimigos estranhos.
A unidade espiritual da
Europa ao mesmo tempo que ilumina melhor também ameaça mais a independência de
cada nacionalidade do que o estrangeiro à porta. Cada povo europeu atual há de
fazer ressuscitar do barbarismo da sua origem a mística coletiva da sua própria
integração na terra-berço. Cada povo europeu atual há de mergulhar-se de novo
nos absurdos milagres que o fizeram na lenda melhor do que na história. Cada
povo europeu atual há de crer novamente naqueles milagres que servem só para si
e nos quais ele sabe acreditar.
Afinal, na Europa, não
há senão casos particulares de europeus: o caso russo, o caso alemão, o caso
inglês, o caso francês, o caso português, o caso espanhol, etc. Os diversos e
determinados casos da Europa. Os diversos, determinados e legítimos casos da
Europa [98].
Santana
Dionísio
Por seu lado, Santana Dionísio, em 1938, referia: verdadeiramente, a Europa nunca constituiu
um conjunto fraterno, uma aliança moral. A sua história, pode dizer-se, só nos
fala de mal-entendidos, de propósitos, de destruição, de brutalidades. E no
entanto, na sua mais íntima estrutura espiritual, nos povos que ela abrange
(mas não abraça), há, indubitavelmente, alguma coisa de comum, alguma coisa com
um lusco-fusco de consciência (análogo ao das cidades gregas que se digladiaram
até se perderem) de que o destino de cada um depende do destino de todos [99].
Esse
alguma coisa de comum não provém, parece-nos, pelo menos essencialmente, nem da
verificação, tantas vezes feita, nas guerras políticas e aduaneiras, de que a
economia europeia é solidária, nem do instinto gregário que o choque com outros
continentes poderia suscitar. A proveniência, parece-nos, dever ser procurada
algures, sem ser nas vísceras empenhadas no sustento e na ânsia de domínio.
Queremos dizer: o que nos permite ainda usar a palavra Europa como exprimindo
alguma coisa de efetivamente concreto, real, é o sentimento obscuro, mas
entranhado, em todos os povos do velho continente, de que eles criaram uma
civilização espiritual sui generis, que eles têm uma maneira sua, metafísica,
de encarar a vida, a pessoa humana, as relações sociais, e dum modo geral todos
os problemas fundamentais que constituem o que hoje se diz por uma só palavra:
cultura. Só isso (e nenhuma razão poderia ser mais forte) não consente que se
diga que a "ideia" de Europa é um simples "flatus vocis"[100].
Abel
Salazar
Finalmente, para Abel Salazar, a Europa atual ... como a Grécia de outrora, é um conjunto em que a
Nação substituiu a "cité". Este conjunto de nações possui uma unidade
de civilização, a civilização europeia.
Este
conjunto, estruturado com o conceito orgânico que a Europa historicamente
elaborou, tende a ultrapassar este conceito. A unidade de civilização procura a
unidade política; simplesmente o novo conceito não está definido: só a
elaboração histórica do futuro o poderá definir. Este conceito é,
evidentemente, antagónico com o de Nação, como outrora, na velha Grécia, o
conceito de nação, em potência, era antagónico com o de "cité".
Como
a Grécia e Roma, igualmente a atual Europa está enclausurada num dilema; porque
ultrapassar o conceito de Nação, seu conceito orgânico, é destruir o atual
Sistema Histórico. Por outro lado, manter o conceito de nação é petrificar a
história e acentuar o contraste com a unidade de civilização. Nesta unidade
está em germe, potencialmente contido, um novo conceito e, portanto, um novo
Sistema Histórico. A Europa oscila assim, constantemente e por forma cada vez
mais aguda, entre o conceito definido historicamente elaborado, e o conceito
futuro, indefinido. Atualmente 'tende' para ele como para qualquer coisa que se
desenhe nas brumas do horizonte, sem, no entanto, se poder precisar o que seja [101].
Falta de inventário
Julgo que falta apenas fazer o inventário, na linha daquilo que
foi esboçado por Martim de Albuquerque em Primeiro
Ensaio sobre a História da "Ideia de Europa" no Pensamento Português,
de 1981[102],
bem como em A Paz Universal no Pensamento
Político Português, de 1970[103].
Por mim, confesso que estou farto daqueles europeístas
post-facto que carregam toneladas de bibliografia estranha e que aqui continuam
a traduzi-la em mau calão.
Só posso pensar a Europa, pensando em português, porque só posso
atingir o universal europeu através da minha diferença, enraizada na história.
A não ser que se tente um revisionismo de repúdio da nossa própria história,
negando a memória e o projeto daquilo que Almerindo Lessa qualificava como o abraço armilar que, aliás, constitui o
cerne do nosso símbolo nacional.
Doze
estrelas
Hoje a Europa tem uma bandeira azul, com uma coroa de doze
estrelas, não uma estrela por Estado, mas o emblemático número doze, considerado símbolo da plenitude e
da perfeição, como doze eram os filhos de Jacob, os trabalhos de Hércules, os
signos do zodíaco, os meses do ano, os apóstolos ou a romana lei das doze
tábuas. Doze estrelas, como as da auréola de uma Virgem que aparece no vitral
da catedral de Estrasburgo, uma mulher vestida de sol, com a lua debaixo dos
pés, tendo uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça (et in capite eius corona stellarum duodecim)... Tudo muito
conforme, aliás, com o capítulo XII do Apocalipse de S. João.
Padre
António Vieira
Compare-se o que a respeito escreve o nosso Padre António
Vieira, onde se fala numa Mulher em dores de parto, dando à luz um Filho varão
que, no entanto, há de reinar sobre todas as nações do mundo com cetro de
ferro. Se um Dragão tenta tragá-lo, eis que ele acaba por ser arrebatado ao
céu, onde acabará por assentar-se no trono de Deus. À Mulher se darão duas
grandes asas de águia com que fugirá do Dragão. Virá depois um Cavaleiro,
montado num cavalo branco, trazendo, na orla do vestido, a divisa rex regum et dominus dominantium,
comandando um exército, também montado em cavalos brancos, que acabará por
vencer o Mal, isto é, a bestialidade do Dragão e os falsos profetas que o
seguem[105].
Do
Quinto Império
Interpretando tal passagem, o Padre António Vieira considera que
se trata de um relato da emergência da Igreja do Quinto Império, onde se
descreve a maneira da Igreja se coroar, e
alcançar o Reino e império universal[106],
onde a Lua é o Império Turco (ou o império dos que apenas têm poder temporal) e
o ferro, a inteireza e constância da
justiça e igualdade com que o mundo há-de ser governado[107].
Poder
dos sem poder
Tratar-se-ia da procura de um poder que não está sujeito às inconstâncias do tempo, nem às mudanças da fortuna
e que se há-de estender até ao fim do
mundo[108].
Porque só então chegará o corpo místico
de que fala São Paulo [109],
com Cristo a nascer de novo[110].
O tal Filho, que tem o trono no Céu, tal como a Igreja tem uma coroa na terra[111].
Morreu
D. Sebastião
Como Jean- Pierre Faye termina a sua antologia L'Europe Une. Les Philosophes et l'Europe,
de 1992, também nos apetece citar a mesma passagem de Fernando Pessoa:
Grécia,
Roma, Cristandade
Europa
- os quatro se vão
Para
onde vai toda a idade.
Quem
vem viver a verdade
Que
morreu D. Sebastião?
[1]José van den Besselaar, Padre António Vieira. Livro Ante-primeiro da
História do Futuro, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1983, pp. 35-36.
[9]D.
JOÃO DE CASTRO, Paraphrase et
Concordançia de Alguas Prophecias de Bandarra, Çapateiro de Trancoso,
Porto, Lopes da Silva, 1901 e 1942, fol. 123 , apud MA, PU, p. 362
[13]Ver
JEAN-PIERRE FAYE, L'Europe Une. Les
Philosophes et l'Europe, pp. 115 e ss., bem como 147 ss.
[29]Apud
MARTIM DE ALBUQUERQUE, A Paz Universal no
Pensamento Político Português, in Estudos
de Cultura Portuguesa, 1º volume, Lisboa, Imprensa Nacional/ Casa da Moeda,
1984, p. 363
[35]J.-E.
SPENLÉ, O Pensamento Alemão. De Lutero a
Nietzsche, trad. port., Coimbra, Arménio Amado, 1942, p. 85. Ver a trad.
cast. de Maria Magdalena Truyol Wintrich, La
Crinstandad o Europa. Seguido de Fragmentos (Selección), Madrid, Instituto
de EstudiosPoliticos, 1977
[45]FRÉDERIC LIST, Système
National d'Économie Politique, trad. fr., Paris, Librairie Capelle, 1857,
2ª ed., p. 224
[57]AUGUSTO
COMTE, Catecismo Positivista ou Exposição
Sumária da Religião Universal em Onze Colóquios Sistemáticos entre uma Mulher e
um Sacerdote da Humanidade, Publicações Europa-América, trad. port. de
Fernando Melro, p.213
[62]CARLOS
LEMMONIER, Os Estados Unidos da Europa,
versão portuguesa de Magalhães Lima, Lisboa, Nova Livraria Internacional, 1874,
reproduzido por MARTIM DE ALBUQUERQUE, em Estudos
da Cultura Portuguesa, 1º Volume, Lisboa, Imprensa Nacional- Casa da
Moeda,1983, pp. 309 ss
[73]PROUDHON,
Du Principe Fédératif, de 1863, 1ª
parte, cap. VII, in A Nova Sociedade,
trad. port., Porto, Rés, s.d., p. 131
[82]Apud
MARTIM DE ALBUQUERQUE, Primeiro Ensaio...,
in Estudos de Cultura Portuguesa, 1º
volume, cit., pp. 290-291 e 294. Trata-se do artigo A Propósito da Escravatura, publicado em O Observador Lusitano em Paris, 1815
[95]AMARO
SACRAMENTO MONTEIRO, Estados Unidos da
Europa, 1931, apud J. CÂNDIDO DE AZEVEDO; Adesão de Portugal à CEE, Lisboa, Secretaria de Estado da
Comunicação Social, 1978, p.7
[96]FERNANDO
PESSOA, Páginas de Pensamento Político- 1,
organização, introdução e notas de António Quadros, Europa América, 1986, pp.
117 ss. e Ultimatum e Páginas de
Sociologia Política, introdução e organização de Joel Serrão, Lisboa,
Ática, 1980, pp. 204 ss
[98]ALMADA
NEGREIROS, Mistica colectiva, in
revista Sudoeste, nº 1, Europa Portugal, Junho de 1935, edição
facsimilada, Lisboa, Contexto Editora, 1982, pp. 30-31
[99]SANTANA
DIONÍSIO, Apreensões sôbre a Sorte da
Europa, in Tangentes. Reflexões de
Ocasião com algum Sentido Intemporal, Lisboa, Seara Nova, 1938, p. 9
[102]A
primeira edição deste estudo foi publicada em In Memoriam de Ruben Andresen Leitão, volume III, Lisboa, Imprensa
Nacional, 1981
[103]A
primeira edição deste estudo foi publicada nos Anais da Academia Portuguesa da História, II Série, volume 23, tomo
II, 1970. Os dois estudos foram incluídos em
MARTIM DE ALBUQUERQUE, Estudos de
Cultura Portuguesa, 1º volume, Lisboa, Imprensa Nacional/ Casa da Moeda,
1983
[105]PADRE
ANTÓNIO VIEIRA, Apologia das Coisas
Profetizadas, organização e fixação do texto por Adma Fadul Muhana, Lisboa,
Cotovia, 1994, p. 229