segunda-feira, 26 de setembro de 2016

V O Estado está acima do cidadão, mas o Homem está acima do Estado.




O Estado está acima do cidadão, mas o Homem está acima do Estado. Fernando Pessoa sintetizou tudo neste lema.

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28 de Junho, dia de muitas memórias, desde o triste referendo sobre as condições criminais da interrupção voluntária da gravidez, onde clara e frontalmente perderam as minhas convicções (1998), ao da edição de "Le Portugal Bailloné" de Mário Soares (1972), onde muitos costumam ir ver as diferenças do original face à posterior tradução portuguesa. Mais além do nosso quintal, assinale-se que em 1914 se deu o atentado de Serajevo, rastilho da Grande Guerra, para nesta mesma data, mas de 1919, se assinar o Tratado de Versalhes, antes de em 1931 ocorrerem as célebres eleições em Espanha para a Constituinte, com vitória da coligação socialista-republicana. Por tudo isto é que prefiro comemorar uma data de 1712, quando nasceu aquele que para mim é o maior escritor de teoria poítica destes últimos tempos: Jean-Jacques.

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Rousseau nasce em Genebra, em circunstâncias trágicas, dado que a mãe morreu durante o parto, prenúncio de uma existência agitadíssima. Aos dez anos chega a vez do pai, relojoeiro, o deixar entregue a si mesmo iniciando-se aquela promenade solitaire ou vagabundagem marcada por um permanente autodidactismo. Encontra o primeiro trabalho como empregado de notário e depressa se acolhe à protecção de uma Madame Warens, católica, agente do rei da Sardenha. É então que se converte ao catolicismo e que foge para Turim.

O Estado está acima do cidadão, mas o Homem está acima do Estado. Fernando Pessoa sintetizou tudo neste lema.

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28 de Junho, dia de muitas memórias, desde o triste referendo sobre as condições criminais da interrupção voluntária da gravidez, onde clara e frontalmente perderam as minhas convicções (1998), ao da edição de "Le Portugal Bailloné" de Mário Soares (1972), onde muitos costumam ir ver as diferenças do original face à posterior tradução portuguesa. Mais além do nosso quintal, assinale-se que em 1914 se deu o atentado de Serajevo, rastilho da Grande Guerra, para nesta mesma data, mas de 1919, se assinar o Tratado de Versalhes, antes de em 1931 ocorrerem as célebres eleições em Espanha para a Constituinte, com vitória da coligação socialista-republicana. Por tudo isto é que prefiro comemorar uma data de 1712, quando nasceu aquele que para mim é o maior escritor de teoria poítica destes últimos tempos: Jean-Jacques.

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Rousseau nasce em Genebra, em circunstâncias trágicas, dado que a mãe morreu durante o parto, prenúncio de uma existência agitadíssima. Aos dez anos chega a vez do pai, relojoeiro, o deixar entregue a si mesmo iniciando-se aquela promenade solitaire ou vagabundagem marcada por um permanente autodidactismo. Encontra o primeiro trabalho como empregado de notário e depressa se acolhe à protecção de uma Madame Warens, católica, agente do rei da Sardenha. É então que se converte ao catolicismo e que foge para Turim.
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A partir de 1744 instala-se em Paris, onde encontra nova companheira, a antiga criada de quarto, Thérèse Levasseur, começando uma actividade de escritor de óperas. Entra então em contacto com os intelectuais mais influentes da época, como Voltaire, que o detesta, e Diderot, que o contrata como colaborador da Enciclopédia. Mas é apenas com trinta e oito anos que se experimenta como escritor quando concorre para a Academia de Dijon, apresentação do trabalho Discours sur les Sciences et les Arts (1750), que lhe dá fama e dinheiro, propondo-se, a partir daqui, a elaborar uma obra global sobre as Institutions Politiques.

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Mas só cinco anos depois surgem alguns frutos desse projecto: para além do Discours sur l’Économie Politique, publicado na Enciclopédia, é editado, no mesmo ano de 1755, o Discours sur l’Origine de l’Inegalité parmi les Hommes. Em 1761 volta ao calvinismo e começa a escrever La Nouvelle Heloïse. Em 1762 chega a vez de Emile ou sur l’Éducation e da principal obra, o Du Contrat Social. Principes de Droit Politique.



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Continua, no entanto, uma vida errante. Em 1756 vai para o Ermitage. Em 1758 está em Montmorency. No mesmo ano em que o Emile era queimado publicamente em Paris, em 11 de Junho de 1762, também o Du Contrat Social sofre de idêntica sorte em Genebra, segundo sentença de 19 de Junho, por ser tendente a destruir a religião cristã e todos os governos. Entre 1763 e 1764, instalado em Val de Travers, na sua Suíça, escreve as Lettres Écrites de la Montagne. Segue então para Inglaterra a convite de David Hume. Aí escreve Les Confessions (1764-1770). Surgem depois as Rêveries d’un Promeneur Solitaire (1776-1778) e a vagabundagem prossegue: Normandia, Lyon, Monquin e Paris, mais uma vez.

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Em 1764-1765 é a elaboração do Project de Constitution pour la Corse, apenas publicado em 1861. Em 1771 chega a vez de Les Considérations sur le Gouvernement de Pologne et sur as Réformation Projectée, publicado em 1782. Morre em Ermenonville (2 de Julho de 1778). Pede para ser enterrado no jardim da Ilha dos Choupos, mas as cinzas em 1794, são transferidas para o Panthéon.

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Na base do pensamento de Rousseau está o estado de natureza, entendido como a verdadeira juventude do mundo onde os homens eram originariamente livres e iguais, bons e felizes, o coração em paz e o corpo em saúde. Essa quase Idade de Ouro platónica seria uma espécie de estado pré-social e até pré-moral, onde o homem se assumia como um agente livre e dotado de perfectibilidade, um estado que talvez nunca tenha existido, que provavelmente jamais existirá e sobre o qual, entretanto, é necessário ter noções correctas para bem julgar o nosso estado presente. Era um tempo de ócio, de indolência, onde os únicos bens seriam a comida, a fêmea e o repouso, e os únicos males, a dor e a fome.




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Depois deste estado selvagem, é que os homens ascenderam à sociedade civil, um mal inevitável criador de um regime artificial de desigualdades, ao colocar os homens na mútua dependência, contrária aos princípios naturais do seu modo de ser. Surgia assim o estado de civilização e com ele viria o contrário do ócio e a petulante actividade do amor próprio. Há assim um dualismo entre nature e domination, acreidtando que o fundamento da autoridade humana não vem de Deus nem da natureza.


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Como fazer a viagem de regresso, como recuperar a liberdade perdida? Reconhecendo a impossibilidade de um regresso puro e simples, porque não é possível a um velho regressar à mocidade, Rousseau propõe, como forma de restituição aos homens do gozo dos seus direitos naturais, a constituição de um contrato social de responsabilidade limitada, em que a pertença ao corpo político não teria de significar a destruição da liberdade de cada um.

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A civilização ou sociedade civil, no sentido de sociedade política, é que teria criado um regime artificial de desigualdades, colocando os homens em mútua dependência: o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer “isto é meu”. Isto é, depois das desigualdades naturais ou físicas, seguiram-se as desigualdades morais ou políticas, onde, além da diferença entre os fracos e os fortes, acresceram as diferenças entre os ricos e os pobres, entre os senhores e os escravos.

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Eis, portanto, o contrato social, que não assentaria na força, na autoridade paternal ou na vontade de Deus, mas sim no livre compromisso daquele que se obriga. Ele seria um pacto duma espécie particular, pelo qual cada um se compromete com todos os outros; donde se segue o compromisso recíproco de todos para com cada um, que é o objecto imediato da reunião.

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A partir de então é que emerge o corpo político e moral, essa comunidade marcada por um moi commun. Um contrato social que, no entanto, constituiria mera determinação da razão e não um facto historicamente verificado, significando um tipo-ideal de constituição política em que os indivíduos conferem ao Estado os seus direitos naturais, para que este os transforme em direitos civis, que concede aos cidadãos.

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Ao contrário dos defensores do duplo contrato, eis que, para Rousseau não há senão um contrato no Estado, é o de associação e este exclui qualquer outro; não se poderá imaginar qualquer outro contrato público que não seja uma violação do primeiro. Só depois viria um pacto de Governo, onde se dá a dissolução do povo que perde a sua qualidade de povo.


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É que importava encontrar uma forma de associação pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça todavia senão a si mesmo e continue tão livre como dantes. Onde cada indivíduo, contratante, por assim dizer, consigo mesmo, encontra-se comprometido numa dupla relação, isto é, como membro do soberano em relação aos particulares e como membro do Estado em relação ao soberano. Assim, os associados tomam colectivamente o nome de povo, e chamam-se em particular cidadãos, quando participantes da autoridade soberana e súbditos quando submetidos à lei do Estado.

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A partir desta distinção, o Estado deixa de ser um mero mecanismo, retomando-se o conceito substancial do político, oriundo de Platão. Neste sentido, Rousseau, conforme salienta Eric Weil, descobre o conceito moderno de razão como unidade de teoria e de acção, de pensamento e de moral, de consciência individual e de lei universal. Com efeito, o Estado volta a adicar-se no interior do homem, numa atitude moral situada no próprio coração do cidadão. Se assim se regressa a uma ideia de vontade racional, dá-se, contudo, um distanciamento face aos autores clássicos, porque a vontade geral é atribuída a todos os indivíduos e não apenas a uma minoria esclarecida ou educada. Aliás, segundo Rousseau, todos os homens possuem a possibilidade de uma vontade racional, pelo que a vontade geral deve vir de todos e ser aplicada a todos.

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É da ideia de vontade geral que o mesmo autor extrai o conceito de soberania, entendida como o exercício da vontade geral, como algo de indivisível e de inalienável, dado que o poder é susceptível de se transmitir, a vontade, não. Deste modo, as cláusulas do contrato social reduzem-se à alienação total de cada associado com todos os seus direitos a toda a comunidade, pelo que o contrato social dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus membros.

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O Estado é também instituído pela vontade geral, sendo encarado como uma pessoa pública ou uma pessoa moral, detendo uma espécie de eu comum (moi commun): tomava noutros tempos o nome de cidade e toma agora o de república ou de corpo político, o qual é chamado pelos seus membros Estado, quando é passivo, Soberano, quando é activo, Potência, ao compará-lo aos seus semelhantes.

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É um ser abstracto e colectivo cujo instrumento é o Governo, entendido como um corpo intermédio estabelecido entre os sujeitos e o soberano por mútua correspon­dência, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade, tanto civil como política. É a acção de todo o corpo agindo sobre si próprio, isto é, a relação do todo com o todo, ou do soberano com o Estado


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Nestes termos, considera incompatível com a natureza do corpo político que um Estado possa estar submetido a outro Estado. Apenas compreende que dois Estados possam estar submetidos ao mesmo principe, porque são as instituições nacionais que formam o génio, o carácter, os gostos e os costumes de um povo. Assim, considera que é a educação que deve dar às almas a forma nacional e dirigir de tal maneira as suas opiniões e os seus gostos, que elas sejam patriotas por inclinação, por paixão, por necessidade. Uma criança, abrindo os olhos, deve ver a pátria e, até à morte, não deve ver mais do que ela. Todo o verdadeiro republicano suga com o leite materno o amor da sua pátria.
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Rousseau também não aceita o conceito aristotélico do homem como animal naturalmente político, dado que o estado de natureza é perspectivado como algo de fundamentalmente pré-social. Reconhece que o Estado foi instaurado pelos que se apropriaram dos maiores bens e para benefício dos mesmos e que o próprio poder do Estado degenerou quando o capricho dos poderosos passou a governar.

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Estas sementes de Estado-razão serão, depois, desenvolvidas por Kant, onde o contrato social (Staatsvertrag) se transforma na razão pura prática, como universal legisladora (rein rechtlich gesetzgebende Vernunft), em ideia pura com fins regulativos. A própria vontade geral (allgemeiner Wille) torna-se a própria vontade racional de cada um dos membros da comunidade, considerados como personalidades autónomas no acto de estas obedecerem ao imperativo categórico e de se tornarem, como tais, legisladoras duma legislação universal.
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Muitos dos que vivem da facturação protectiva desta anarquia ordenada, em nome de um securitário de pronto-a-vestir, estão agora a dizer que a democracia corre o risco de ficar dependente da vontade das maiorias, atirando a culpa para o velho Jean-Jacques, conforme rezam algumas vulgatas contra-revolucionárias, as dos tradicionais inimigos da mesma democracia. Por mim, admirador incontido de Rousseau e do seu "Contrato Social", uma das maravilhas da teoria política, resta-me reler as interpretações que dele fazem um Eric Weil, reconciliando-o com Hegel, ou um Karl Deutsch, que o faz conjugar com Kant.

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Até em Portugal, o nosso melhor teórico da democracia do século XX, António Sérgio, retomando a senda, não deixou de assinalar a enorme diferença que vai da quantitativa "vontade de todos", quando todos decidem motivados pelo interesse de cada um, à sagrada "vontade geral", a única verdadeiramente soberana, quando cada um, ascendendo ao próprio todo, através de uma conversão cívica, abdica dos seus próprios interesses, transformando a sua própria conduta num exemplo moral, numa máxima universal, naquilo que Kant, o verdadeiro discípulo de Rousseau, vai qualificar como o imperativo categórico.

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Por outras palavras, a verdadeira democracia só existe quando, através da liberdade do indivíduo, este lhe dá as raízes morais da sua própria autonomia. Logo, não há democracia sem esse esforço de cada um dar regras a si mesmo, no sentido de procura da perfeição e da consequente compreensão da coisa pública como um "moi commun".


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É dessa sucessão de decisões individuais, onde cada um se assume como o próprio todo, que nasce a norma fundamental das comunidades políticas democráticas, casando-se o impulso liberdadeiro com o profundíssimo sentido da igualdade, através daquela comunhão identitária que é exigida pela virtude da fraternidade. Sempre foi este o sonho girondino que o activismo minoritário de certos jacobinos procurou dissipar com o curto-circuito do terror e, depois, com a usurpação bonapartista. Pelo menos, até Alexis de Tocqueville.

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Foi esta a revolução francesa que triunfou a partir de 1815 com a moderação cartista da balança de podres, ou com a Revolução de Julho de 1830, quando a racionalidade liberal se casou definitivamente com a procura maioritária da igualdade. E mais não dizem os mais recentes consensos das democracias pluralistas, entre a poliarquia, o sufrágio universal e o Estado de Direito, conforme também subscreveram um John Rawls ou um Habermas, já depois da queda do Muro. Isto é, a democracia há muito que é demoliberal, com séculos de experimentação e de conciliação da revolução atlântica com velhos contraditores, como o foram, a partir de 1848, o socialismo e a democracia cristã. E como o poderão ser ex-comunistas e ex-fascistas, se tiverem a humildade de, para tanto, contribuírem.

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Não haverá democracia como valor universal se não reinterpretarmos o sentido regulativo do contrato social de Rousseau, à boa maneira da procura do melhor regime (politeia) de Platão, ou da ideia romana de república, segundo o ritmo de Cícero. Foi o que semeou São Tomás de Aquino, até que Leão XIII emitiu a "Rerum Novarum", mas em 15 de Maio de 1891. Julgo que pode ser essa a linha de novas coisas novas que os choques de rua na Tunísia e no Egipto acabem por desencadear. A um alargamento da base de consenso universal da democracia. Sem exclusão do Islão.

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Ai de nós se pedirmos ao mundo islâmico uma mera tradução em calão desse valor universal. Daí a minha esperança, porque a melhor forma de dialogarmos com os nossos vizinhos da outra margem do velho mar interior, mediterrâneo, talvez passe por nos expatriarmos nas nossas próprias origens, procurando os lugares comuns donde brotámos. E aí, Platão e Aristóteles, tal como Maimónides e Averróis, poderão voltar a ser pontes para que conjuguemos deuses comuns.

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Como já o fizeram os construtores do Estado de Israel. Como o Mahatma aplicou na Índia, através de Tolstoi. E como Confúcio está recuperando na China. Basta registar a via da actual Indonésia, ou o percurso da Turquia. Porque todas as civilizações universais são filosoficamente contemporâneas no intemporal, todas têm as mesmas raízes do político e todas podem encontrar experimentações similares, em termos de mais liberdade, mais igualdade e mais fraternidade. Se houver homens de boa vontade que admitam o regresso dos deuses do espírito às nossas cidades antigas, pode voltar a ser conjugado o velho princípio tomista do QOT, adoptado pelas Cortes de Coimbra em 1385: o que a todos diz respeito, por todos deve ser decidido.
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Muitos dos que vivem da facturação protectiva desta anarquia ordenada, em nome de um securitário de pronto-a-vestir, estão agora a dizer que a democracia corre o risco de ficar dependente da vontade das maiorias, atirando a culpa para o velho Jean-Jacques, conforme rezam algumas vulgatas contra-revolucionárias, as dos tradicionais inimigos da mesma democracia.
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Por mim, admirador incontido de Rousseau e do seu “Contrato Social”, uma das maravilhas da teoria política, resta-me reler as interpretações que dele fazem um Eric Weil, reconciliando-o com Hegel, ou um Karl Deutsch, que o faz conjugar com Kant.
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Até em Portugal, o nosso melhor teórico da democracia do século XX, António Sérgio, retomando a senda, não deixou de assinalar a enorme diferença que vai da quantitativa “vontade de todos”, quando todos decidem motivados pelo interesse de cada um, à sagrada “vontade geral”, a única verdadeiramente soberana, quando cada um, ascendendo ao próprio todo, através de uma conversão cívica, abdica dos seus próprios interesses, transformando a sua própria conduta num exemplo moral, numa máxima universal, naquilo que Kant, o verdadeiro discípulo de
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Rousseau, vai qualificar como o imperativo categórico. Por outras palavras, a verdadeira democracia só existe quando, através da liberdade do indivíduo, este lhe dá as raízes morais da sua própria autonomia. Logo, não há democracia sem esse esforço de cada um dar regras a si mesmo, no sentido de procura da perfeição e da consequente compreensão da coisa pública como um “moi commun”. É dessa sucessão de decisões individuais, onde cada um se assume como o próprio todo, que nasce a norma fundamental das comunidades políticas democráticas, casando-se o impulso liberdadeiro com o profundíssimo sentido da igualdade, através daquela comunhão identitária que é exigida pela virtude da fraternidade.
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Sempre foi este o sonho girondino que o activismo minoritário de certos jacobinos procurou dissipar com o curto-circuito do terror e, depois, com a usurpação bonapartista.
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Pelo menos, até Alexis de Tocqueville. Foi esta a revolução francesa que triunfou a partir de 1815 com a moderação cartista da balança de podres, ou com a Revolução de Julho de 1830, quando a racionalidade liberal se casou definitivamente com a procura maioritária da igualdade. E mais não dizem os mais recentes consensos das democracias pluralistas, entre a ploiarquia, o sufrágio universal e o Estado de Direito, conforme também subscreveram um John Rawls ou um Habermas, já depois da queda do Muro.
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Isto é, a democracia há muito que é demoliberal, com séculos de experimentação e de conciliação da revolução atlântica com velhos contraditores, como o foram, a partir de 1848, o socialismo e a democracia cristã. E como o poderão ser ex-comunistas e ex-fascistas, se tiverem a humildade de, para tanto, contribuírem. Não haverá democracia como valor universal se não reinterpretarmos o sentido regulativo do contrato social de Rousseau, à boa maneira da procura do melhor regime (politeia) de Platão, ou da ideia romana de república, segundo o ritmo de Cícero.
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Foi o que semeou São Tomás de Aquino, até que Leão XIII emitiu a “Rerum Novarum”, mas em 15 de Maio de 1891. Julgo que pode ser essa a linha de novas coisas novas que os choques de rua na Tunísia e no Egipto acabem por desencadear.
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A um alargamento da base de consenso universal da democracia. Sem exclusão do Islão. Ai de nós se pedirmos ao mundo islâmico uma mera tradução em calão desse valor universal. Daí a minha esperança, porque a melhor forma de dialogarmos com os nossos vizinhos da outra margem do velho mar interior, mediterrâneo, talvez passe por nos expatriarmos nas nossas próprias origens, procurando os lugares comuns donde brotámos.
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E aí, Platão e Aristóteles, tal como Maimónides e Averróis, poderão voltar a ser pontes para que conjuguemos deuses comuns. Como já o fizeram os construtores do Estado de Israel. Como o Mahatma aplicou na Índia, através de Tolstoi. E como Confúcio está recuperando na China. Basta registar a via da actual Indonésia, ou o percurso da Turquia. Porque todas as civilizações universais são filosoficamente contemporâneas no intemporal, todas têm as mesmas raízes do político e todas podem encontrar experimentações similares, em termos de mais liberdade, mais igualdade e mais fraternidade. Se houver homens de boa vontade que admitam o regresso dos deuses do espírito às nossas cidades antigas, pode voltar a ser conjugado o velho princípio tomista do QOT, adoptado pelas Cortes de Coimbra em 1385: o que a todos diz respeito, por todos deve ser decidido.
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Por causa daquilo que rescrevi sobre Rousseau, recebi sinais contraditórios, desde os habituais apoios aos tradicionais preconceitos reaccionários (strictu sensu) que não querem reparar no genebrino como um desses geniais recriadores das teses de Platão, Suárez ou Espinosa, onde as parábolas não são ideologia de caricatura. Desenganem-se os recolectores das modas que passam de moda. Não evolui nada nessa leitura de Rousseau, apenas repito o que proclamei desde a minha dissertação de doutoramento e que há cerca de um quarto século proclamo desde que tenho licença para dar a minha própria matéria. Sou do partido de Espinosa, Rousseau e Kant, desse subsolo filosófico liberalão e humanista que advoga o radicalismo do indivisus contra os colectivismo que nos querem arrebanhar. Julgo até que o Contrato Social é a peça literária mais maravilhosa de toda a nossa civilização.
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Claro que, sobre o autor, apenas repito o que, dele, foi vislumbrado por autores como o português António Sérgio, por politólogos como Karl Deutsch ou por filósofos como Eric Weil. Apenas noto que a subtil distinção que faz entre a vontade geral e a vontade de todos, é equivalente às categorias suarezistas da vontade como universal e à vontade como singular, nesse exercício onde o próprio jesuíta da neo-escolástica peninsular permitiu a conciliação com o imperativo categórico de Kant. Refazer guerras civis ideológicas por causa do nosso pai comum da civilização demoliberal é quase equivalente às teses que distintos membros deste governo emitiram quanto a Platão, considerando-o pai do totalitarismo comunista. Por causa destas e doutras é que continuaria a desembarcar na praia do Mindelo, sob a bandeira azul e branca da liberdade.
A nossa vontade é uma vontade geral sempre que se determina pela regra de Kant: procede de tal maneira que a razão do acto que praticas se possa erigir em lei geral, universal

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A ideia central de Rousseau no Contrat Social está na distinção que faz entre a vontade geral e a vontade de todos. Se esta última é a que olha ao interesse privado (intérêt privé) e não é mais do que a soma de vontades particulares, já a vontade geral  não olha a outra coisa que não seja o interesse comum (intérêt commun), logo é sempre recta e tende sempre para a utilidade pública. Esta ideia remonta aliás ao Discours sur l'Économie Politique, onde aparece identificada com a vontade do ser moral que é o corpo político e que tende sempre para a conservação e para o bem estar do todo e de cada parcela, sendo a fonte das leis, e a regra do justo e do injusto. Nessa mesma obra, Rousseau, identifica-a com a própria lei natural, no caso da grande cidade do mundo se tornar corpo político, onde os Estados e os povos diversos não são senão membros individuais. 

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O geral assume-se assim como o contrário do particular. Porque qualquer sociedade política é composta de outras sociedades mais pequenas, de diferentes espécies, onde cada uma tem os seus interesses e as suas máximas. Assim, a vontade destas sociedades particulares tem sempre duas relações: para os membros da associação, é uma vontade geral; para a grande sociedade, é uma vontade particular, de tal maneira que aquilo que aparece como correcto, segundo a primeira perspectiva, pode surgir como vicioso, na visão da grande sociedade.

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Segundo Karl Deutsch, a vontade de todos não passaria da maioria das vontades particulares, não fundamentada no interesse comum de toda a comunidade, enquanto a vontade geral é a soma de todos aqueles interesses que as pessoas possuem em comum.

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Para António Sérgio, a vontade geral é a vontade de cada um de nós, a vontade de qualquer indivíduo humano, sempre que o indivíduo quando se propõe actuar, tome uma atitude de pensar objectiva, racional, geral, desprendida dos limites do seu eu sensível. O ente animado de vontade geral é aquele em que o Cidadão coincide com o Homem, aquele que subir do indivíduo à pessoa, do plano biológico ao plano do Espírito, universal e imutável. A nossa vontade é uma vontade geral sempre que se determina pela regra de Kant: procede de tal maneira que a razão do acto que praticas se possa erigir em lei geral, universal.

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Numa nota de rodapé  do livro III do capítulo II de Du Contrat Social, Rousseau salienta: cada interessse, diz o marquês d’Argenson, “tem  princípios diferentes. A concordância de dois interesses particulares forma-se por oposição de um tereceiro”. Ele teria podido acrescentar que a concordância  de todos os interesses se forma por oposição ao de cada um se não houvesse interesses diferentes, apenas se sentiria o interesse comum, que nunca encontraria obstáculo: as coisas aconteceriam por si e a política deixava de ser uma arte. Hannah Arendt chama a atenção para o facto desta nota conter a chave do conceito de vontade geral de Rousseau, salientando que o facto dela aparecer unicamente em pé de página mostra apenas que a experiência concreta de Rousseau da qual derivou a sua teoria se torna tão natural para ele que quase não pensou que merecesse ser mencionada.

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Para a mesma autora, se esse terceiro, até Rousseau, era o inimigo comum que deveria ser encontrado no domínio dos negócios estrangeiros (cita, a propósito Saint-Just para quem seules les affaires étrangères relevait de la “politique”, tandis que les rapports humaines formaient “le social”, eis que, a partir do genebrino, passou a considerar-se que tal inimigo existia dentro do peito de cada cidadão, ou seja, na sua vontade e interesse particulares, onde a vontade é uma espécie de articulação automática do interesse, pelo que a nação não precisa de esperar por um inimigo externo, dado que a respectiva unidade é garantida enquanto cada cidadão transportar dentro de si o inimigo comum e para tomar parte no corpo político da nação, cada cidadão dever erguer-se e manter-se em rebelião constante consigo próprio, onde o valor de um homem pode ser julgado pela medida em que ele actua contra o seu próprio interesse e contra a sua própria vontade.

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Era como se Rousseau, na sua revolta contra a razão, tivesse visto uma alma dividida em dois no lugar da divisão em dois da unidade que se manifesta no diálogo silencioso consigo próprio e a que chamamos pensamento. E desde que essa divisão da alma é um conflito e não um diálogo, ela produz paixão no seu duplo sentido de sofrimento intenso e de intenso arrebatamento.




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 Muitos pretensos democratas nunca compreenderam a profunda mensagem de Rousseau, continuam a pensar que a vontade de todos se identifica com a vontade geral, repetindo a falácia dos eternos inimigos da democracia.

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Como ensinou Kant, e repetiu António Sérgio, a vontade de todos, marcada pela soma dos interesses de cada um, nunca pode ser a fonte da soberania popular. Não há democracia se esta não assentar no esforço educativo da vontade geral, onde cada um decide como se fosse o próprio soberano abstracto, movido pelos interesses do todo, e não pelos respectivos interesses particulares.

52
Por outras palavras, a decisão de um indivíduo, no âmbito da cidadania, implica o imperativo categórico, aquelamoralização da política, onde a actuação de cada um pode ser elevada a uma lei universal. Onde cada um, pensando como deve-ser, de forma racional e justa, acaba por praticar o bem da autenticidade, quando, da respectiva conduta, se pode extrair uma lei universal, porque entre o dizer e o fazer há coerência e força de convicções. Democracia não ésondajocracia.

53
Manhã de bonança... releio as cartas que Rousseau escreveu da Montanha. Depois do conselho directivo de sua pátria o ter processado e punido como ímpio, mandando queimar suas obras. "Mes livres, quoi qu'on fasse, porteront toujours témoignages d'eux mêmes; et le traitement qu'ils ont reçu ne fera que sauver de l'opprobre ceux qui auront l'honneur d'être brûlés après eux".

54
Jean-Jacques repete o que escreveu Espinosa, depois de ser excomungado da sua Sinagoga. Porque os expulsos por D. Manuel I, ao insistirem nas palavras e nos métodos dos perseguidores, todos se enredaram num inquisitorialismo universal que, séculos depois, continua, como nalguns "racha sindicalistas" de hoje, vindos da extrema-esquerda benzida...

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Tal como Espinosa e Rousseau, importa regressar ao estoicismo. Não responder ao ódio com o ódio. À perseguição, com a perseguição. Desprezar o método. Não dizer que os fins justificam os meios. Basta notar como os meios do fascismo não são democráticos, só porque são usados em democracia.

56
Voltando a Rousseau: há uma diferença entre a constituição do Estado e a constituição do Governo. "Le meilleur des gouvernements est l'aristocratique; la pire des souverainités est l'aristocratique".

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Ai das democracias, como em certos segmentos da nossa, que, assentes numa federação de soberanias aristocráticas, ou, pior ainda, oligárquicas, clientelistas, nepotistas, partidocráticas, carreirísticas ou amiguistas, se decretam como o governo dos melhores, quando não passam de mera consequência de sucessivas ditaduras da incompetência!

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Há por aí muitos ilustres democratas que têm um currículo pleno de persiganga, nomeadamente repetindo a necessidade de queima de obras "téméraires, scandaleux, impies, tendants à détruire la religion chrétienne et tous les Gouvernements"...

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E não é por acaso que misturam, em sua roda de compra de prestígio, comendadores e executantes do despotismo ministerial de todos os quadrantes, crenças e sectarismos. Até poderiam reunir respectivo conselho de honra, fazendo cerimonial de "oligarquia das bestas" em redor da estátua de Sebastião José, o habitual sucedâneo ...

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Confesso que sou intolerante para como todos quantos mandaram assassinar adversários políticos, em sentido estrito, e não apenas metafórico. Ou perante os que calaram, por maquiavélica gestão de poder, assassinatos levados a cabos por serviçais. A memória da liberdade exige a verdade e não admite a vergonha de os ouvirmos como psicopatas sentenciadores.

Jean-Jacques Rousseau nasceu em Genebra em 1712, em circunstâncias trágicas, dado que a mã e morreu durante o parto, prenúncio de uma existência agitadíssima. Aos dez anos chega a vez do pai, relojoeiro, o deixar entregue a si mesmo iniciando aquela promenade solitaire aquela vagabundagem que o leva a uma educação quase autodidacta. Encontra o primeiro trabalho como empregado de notário e depressa se acolhe à protecção de uma Madame Warens, católica, agente do rei da Sardenha. É então que se converte ao catolicismo e que foge para Turim.
A partir de 1744 instala-se em Paris, onde vai encontrar nova companheira, a antiga criada de quarto, Thérèse Levasseur, começando uma actividade de escritor de óperas: primeiro Les Muses Galantes, depois Le Devin du Village, 1752
Entra então em contacto com os intelectuais mais influentes da época, como Voltaire, que o detesta, e Diderot, que o contrata como colaborador da Enciclopédia.
Mas é apenas com trinta e oito anos que se experimenta como escritor quando concorre para a Academia de Dijon, apresentando o trabalho Discours sur les Sciences et les Arts (1750), que lhe dá fama e dinheiro. É então que se propõe elaborar uma obra global sobre as Institutions Politiques.
Mas só cinco anos depois é que surgem alguns frutos desse projecto: para além do artigo Discours sur l'Économie Politique, publicado na Enciclopédia, é editado, no mesmo ano de 1755, o Discours sur l'Origine de l'Inegalité parmi les Hommes.
Em 1761 volta ao calvinismo e começa a escrever La Nouvelle Heloise. Em 1762 chega a vez de Emile ou sur l'Éducation e da principal obra, o Du Contrat Social. Principes de Droit Politique.
Continua, no entanto, uma vida errante. Em 1756 vai para o Ermitage. Em 1758 está em Montmorency. No mesmo ano em que Emile era queimado publicamente em Paris, em 11 de Junho de 1762, também o Du Contrat Social vai sofrer de idêntica sorte em Genebra, segundo sentença de 19 de Junho, por ser tendente a destruir a religião cristã e todos os governos.
Entre 1763 e 1764, instalado em Val de Travers, na sua Suíça, são as Lettres Écrites de la Montagne . Segue então para Inglaterra a convite de David Hume. Aí escreve Les Confessions (1764-1770). Surgem depois as Rê veries d'un Promeneur Solitaire (1776-1778) e a vagabundagem prossegue: Normandia, Lyon, Monquin e Paris, mais uma vez. Em 1764-1765 é a elaboração do Project de Constitution pour la Corse, apenas publicado em 1861. Em 1771 chega a vez de Les Considérations sur le Gouvernement de Pologne et sur sa Réformation Projectée, publicado em 1782. Morre em Ermenonville (2 de Julho de 1778). Pede para ser enterrado no jardim da Ilha dos Choupos, mas as cinzas em 1794, são transferidas para o Panthéon