segunda-feira, 26 de setembro de 2016

VI Fingindo que é verdade aquilo que na verdade sou


Ter sempre na memória o mártir Jacques de Molay, Grão-mestre dos Templários, e combater, sempre e em toda a parte, os seus três assassinos - a Ignorância, o Fanatismo e a Tirania

Fernando Pessoa,  em 30 de Março de 1935

I



Panteísmo
Quase me apetece fingir que é verdade aquilo que na verdade sou, e confessar que, em primeiro lugar, me sinto panteísta, adepto do pluralismo dos divinos. O meu primeiro vício está em não cumprir os três primeiros mandamentos de Moisés, dado que sou um militante daquela heresia que, no tocante ao transcendente, vale a pena distinguir para unir.


Contra a racionalidade finalística
O meu segundo vício está em não seguir as regras do método da modernidade cartesiana, rejeitando os deicídios de uma racionalidade finalística que nega o mistério e confunde o humanismo com a ilusão de podermos ser “donos e senhores da natureza”.


Do paradoxo
O meu terceiro vício está em usar e abusar do paradoxo, essa “forma mentis” que, conforme nos ensina Mounier, brota do ponto de união da eternidade com a historicidade, do infinito com o finito, da esperança com o desespero, do em trans-racional com o racional, do indizível com a linguagem. A certeza das certezas, ou, melhor, o acto de fé central é para a razão uma antinomia, e a sua solidez está composta do impulso mútuo que se dá nos dois pólos da antinomia.

Contra os conservadores do que está
Em quarto lugar, quero assumir-me contra os conservadores do que está. Seguindo assim o lema de Miguel de Unamuno, considero que a essência do homem ocidental é ser do contra, o que reforça a minha posição de conservar, porque, não sendo conservador do que está, sou um acérrimo conservador do que deve ser e continuo um resistente camponês, com nostalgia da terra natal.

Tradicionalista
Daí que me defina como um tradicionalista que detesta os reacionários, e que tem de assumir-se como um radical do centro. Um liberal liberdadeiro deve ser libertacionista para servir a justiça. Tal como um nacionalista que assuma a armilar tem de ser mais universalista do que soberanista.


Casar a honra com a inteligência
Logo gosto de dizer que bem gostaria de um regime que casasse a honra com a inteligência, a emoção com a razão, contra o anterior absolutismo monárquico, para evitar o posterior despotismo de todos, esse absolutismo do povo que conduziu aos inevitáveis césares de multidões. Portanto, tive que desembarcar no Mindelo e continuo cartista e manuelino, mesmo depois dos buissidentes terem assassinado ou rei ou de Salazar ter enterrado D. Manuel II.

Liberal e conservador
Logo, assumo-me como um liberal anti-neolib e um conservador anti-neocon. Seguindo o paradoxo, continuo a ser considerado estadualista entre os neoliberais, heterodoxo anti-americano entre os “neocons”, autor de livros de poesia entre os doutorados em politologia, saloio entre os capitaleiros. Mesmo assim prefiro ser um homem livre que ousa viver como pensa, sem pensar como vive, nomeadamente na avença ou no subsídio que assim não recebo, porque também os não peço.


Contra a ditadura dos conceitos
Número oito: contra a ditadura dos conceitos. Porque se a liberdade não nasce da certeza, mas da incerteza (Kierkegaard), apesar de professor de coisas políticas, não aceito que toda a realidade possa ser definida, isto é, reduzida a conceitos, porque o objeto é uma realidade que existe independentemente do sujeito, essa realidade entendida como o tal objeto de conhecimento que pode ser definida, classificada, analisada e manipulada através dos conceitos.

Cientista anticientificista
Número nove: um cientista anticientificista. Acresce que, como cientista, subscrevo aquele ritmo da ciência que, conforme Leo Strauss, é a tentativa de substituir a opinião sobre todas as coisas pelo conhecimento de todas as coisas, a passagem do exotérico, do socialmente útil, daquilo que é compreensível por qualquer leitor, ao esotérico, isto é, aquilo que só se revela depois de um estudo demorado e concentrado. Porque a ciência, para utilizarmos as palavras de Eric Weil, não é apenas a emissão de uma opinião qualquer a respeito da existência humana em sociedade; é uma tentativa de formular o sentido da existência, definindo o conteúdo de um género definido de experiências.

O problemático contra o sistemático
Número dez: pelo problemático contra o sistemático. Acredito mais no pensamento problemático do que no pensamento sistemático, pelo que tento pesquisar sempre o problema, isto é, toda a questão que aparentemente permite mais de uma resposta, mas que também requer, necessariamente, o entendimento preliminar, só passível de compreensão. Onde se reclama que só pode haver diálogo entre posições adversárias, quando entre elas se estabelecem pontes de consensualidade ou lugares comuns.


Dos indivíduos como sujeitos
Porque os indivíduos só começaram a ser vistos como sujeitos ativos a partir do século XII, com o desenvolvimento da Escola dos Glosadores e com o proto-individualismo franciscano. Só a partir de então é que a teoria e a prática começaram a distinguir-nos do grupo, principalmente quando se iniciou o processo de conquista da primeira das liberdades: o direito à segurança, o direito de cada um à apropriação do seu próprio corpo. Porque até então havia um poder do todo sobre o corpo de cada um, havia o ius vitae necisque, um poder de vida ou de morte, que o paterfamilias havia transmitido ao princeps.



Quando os homens começaram a ser humanos
Foi então que começámos a deixar de ser escravos, quando nos passámos a distinguir das coisas. Quando o homem passou a ser mais que um simples ter e, por isso, não pôde continuar a ser um simples tido. Quando o homem passou a exigir um direito penal humanista, onde a definição dos crimes deixou de ser retroativa, onde o processo proibiu a tortura, onde as penas cruéis foram abolidas e a própria pena de morte começou a ser posta em causa. Quando os homens começaram a ser humanos, pensados à imagem e semelhança de um Deus em figura humana. Até porque importa recordar, conforme as palavras de Battaglia, não existe nenhuma grande conquista da humanidade no sentido da liberdade e do progresso, que se não ligue ao nome de um filósofo do direito.


Da extinção da escravatura à abolição da pena de morte, da igualdade de oportunidades entre pessoas de sexo ou etnias diferentes, à aplicabilidade política de um conceito de cidadania ativa – com uma igualdade entendida não apenas como igualdade da lei ou perante a lei, mas antes como igualdade pela lei, isto é, como igualdade de oportunidades, como igualdade perspetivada com o sal da liberdade, da justiça e da solidariedade –, é todo um secular processo de luta pelo direito como dever ser que, muitas vezes, tem de assumir-se contra o direito que está posto na cidade.


Memória do sofrimento
Como salienta Metz, a dinâmica essencial da História é a memória do sofrimento, como consciência negativa de liberdade futura e como estimulante para agir, no horizonte desta liberdade, de modo a superar o sofrimento. Uma memória do sofrimento que força a olhar para o “theatrum mundi” não só a partir do ponto de vista dos bem-sucedidos e arrivistas mas também do ponto de vista dos vencidos e das vítimas.


Determinar qual o além do direito tem sido, aliás, constante tarefa dos que pensam o direito. Desse direito, conforme a definição de lei dada por São Tomás de Aquino, como uma ordem elaborada pela razão tendo em vista o bem comum e promulgada por aquele que tem o encargo da comunidade. Dessa lei que, conforme Montesquieu, tem de ser a razão humana enquanto governa todos os povos da terra. Desse direito que se é verdade além dos Pirinéus não pode ser mentira aquém ou além de qualquer barreira geográfica ou mítica


Somos portugueses, pensamo‑nos portugueses, ensimesmando uma história que também foi precoce na consideração do homem como sujeito, no sentido vincadamente existencial de dono do seu próprio corpo, tanto na abolição da escravatura como na abolição da pena de morte.


Por mim, quero retomar o estoicismo romano de Cícero, para quem, das leis, todos somos escravos, para que possamos ser livres (legibus omnes servi sumus, ut liberi esse possimus). Para bons compreendedores, meias palavras bastam. A nossa tradição humanista sempre juntou o humanismo laico ao humanismo cristão. E não consta que o segundo, consolidado católico tradicionalista, tenha saneado da história o patriotismo iluminista, o patriotismo liberal e o patriotismo republicano. Nem todos os que não seguem a sacristia têm de ser da cavalariça.

 
III

Nenhum cardeal, patriarca, bispo, padre, doutor ou numerário tem suficientes requisitos para dizer que é o único que pode penetrar nas profundezas do movimento livre das correntes de ideias e passar a ditar o bem e o mal, mobilizando, em nome do báculo, a espada da retaliação. De outro modo, poderemos concluir que certos ventos congreganistas podem voltar a soprar contra a lusitana antiga liberdade e os duzentos anos de demo-liberalismo.


Portugal não voltará a reduzir-se aos limites estreitos dos pequenos quintais  que se autodecretem como o caminho e a verdade. São mais fortes os homens livres donos de um pensamento livre. Os que não se deixam algemar por quem possa pensar-se herdeiro dos inquisidores, benzidos ou laicos. Cá por mim, contra todas as sugestões, continuarei a citar Kant e a invocar Espinosa, São Francisco de Assis, Teilhard de Chardin, Agostinho da Silva, Gilberto Freyre e Fernando Pessoa.


IV
Todos os anos, sempre o mesmo ritmo dos sinais do tempo, especialmente quando o tempo que vivemos não são os prometidos amanhãs que cantam e que podemos retomar a eterna humildade dos velhos humanistas que nunca foram como aqueles vanguardistas que pensam deter as alavancas daquela inteligência que pretendeu assumir o controlo do processo histórico.

Porque a tal história não é, afinal, o produto das boas ou más intenções de certos homens, mas antes o resultado da ação de todos os homens. Porque não são os abstratos caixilhos teóricos de certa luta de classes na teoria que fazem a história, mas antes os anónimos homens concretos que a fazem e refazem, mesmo saberem que história vão fazendo.

Esta cocriação de homens livres raramente segue os manuais planeamentistas do pensamento único e dos livros únicos do politicamente correto. O normal é haver anormais, isto é, paradigmas que convergem e divergem, para que o amanhã seja um acaso procurado que nos vai surpreender. Há muitas curvas no caminho, para quem prefere as peregrinações dos carreiros do pé descalço que desde sempre trilhamos.

A espiral do sectarismo
Apenas concluo que o congreganismo jesuítico gerou a insurgência anticongreganista demoliberal que, por sua vez, provocou a ressurgência antilaicista, com o habitual ciclo de persigangas que não tem permitido que todos os homens de boa vontade possam ser homens livres. E poucos reparam que não é possível inventar o que já está inventado nem descobrir o que já está descoberto.

Saber é não esquecer
Por mim, que subscrevo Marco Aurélio, Erasmo, Montaigne e Kant, apenas devo concluir que, por isso mesmo, só sei que nada sei. Porque pensando, apenas continuo a procura do que nunca irei achar, nesta viagem para a raiz do mais além, onde, felizmente, nunca haverá o fim da história. Fica a esperança, porque os homens são seres que nunca se repetem, vivendo acontecimentos que também nunca se repetem. Saber apenas é não esquecer, ou lembrar. Mas como? Se eu não sei ler nem escrever e apenas posso soletrar, se me disserem a primeira letra?

Cada um de nossos eus, perdido nas suas circunstâncias, apenas pode ligar coisa com coisa, compreendendo o todo pela intuição imediata da essência. Logo, só por dentro das coisas, pela imanência, é que as coisas realmente são a situada transcendência que nos permite a cultura humanista.

Se calhar Deus é o mundo e o cosmos vai além daquilo que solitariamente pensamos, apesar de cada um continuar a ser o único sempre centro do mundo que sempre e para sempre podemos conhecer.

Todas as liturgias são ridículas…
Os chineses do século XVI diziam que os portugueses eram bárbaros, isto é, diabos vermelhos, porque comiam pedras (pão) e bebiam sangue (vinho), tal como outros povos diziam que os cristãos eram antropófagos porque, em seus cerimoniais, comiam o corpo de um deus feito homem. É o que fazem todos os que são marcados pela incompreensão face aos símbolos decepados da unidade espiritual de que os rituais são simples parcela.

…fora dos templos em que se dá a comunhão e a religação
É por esta e por outras que detesto todo o sectarismo que pretende monopolizar o sagrado para a respetiva liturgia e que, fradescamente, semeia a intolerância, insinuando o ridículo face as alfaias que os outros usam para os mesmos fins. Afinal, todas as liturgias são ridículas fora dos templos em que se dá a comunhão e a religação. Contudo, mais ridículos ainda são os que não têm liturgia sentida por dentro, ou os que se ficam pelos sucedâneos e pelas vulgatas de certo dogmatismo pretensamente antidogmático.

Do imprimatur e do nihil obstat
Por mim, que, sobre as verdades eternas, apenas sei que nada sei, resta-me continuar a procura da verdade, pelos variados caminhos que segue aquele que apenas pretende ter a boa vontade daqueles que querem conquistar a glória do homem livre. Porque ninguém pode deter o monopólio do "imprimatur" e do "nihil obstat" para a edição desses manuais de metodologia, com os consequentes livros únicos dos inquisidores, vanguardistas, vigilantes da revolução, ou contínuos e sargentos do senhor diretor.

Leio, numas páginas emitidas por um eclesiástico retirado do ativo, e tão paralelamente difundidas por dilectos seguidores do protocolo dos sábios do Sião e das técnicas de Barruel, que José Agostinho de Macedo e a "Besta Esfolada" ainda continuam no ctivo: porque não sabemos as relações existentes, quem são e quem deixam de ser e as razões porque estão, e de repente aparece mais um aqui ou ali, verificando-se que estão sempre colocados em lugares especiais do poder.

Por outras palavras, para o retirado, não deve haver nenhum, nem aqui nem ali, e, muito menos, num qualquer lugar especial de poder, ao contrário de algumas exceções ministeriais que Salazar tolerou. Talvez porque não devesse existir um Winston Churchill, um D. Pedro IV, um duque de Loulé, um Fontes Pereira de Melo, um Alexandre Herculano, um Egas Moniz, mais de metade dos chefes de governo da monarquia liberal e outros tantos da Primeira República, bastando o deputado José dos Santos Cabral e a primeira lei com que o regime do Estado Novo nos resolveu brindar.


Se calhar o resignatário eclesiástico julga que a liberdade e a democracia apenas surgiram em 1891, graças aos esforços de uma coisa chamada "Syllabus", bem como de séculos de relaxação para o braço secular do santificado ofício. Certa pré-leonina mentalidade que remeteria Trumann para a fogueira, odeia a Revolução Inglesa e a Revolução Norte-Americana e certamente detesta 24 de Agosto de 1820 ou 9 de Setembro de 1836. Isto é, ela não vive cá, isto é, no Portugal liberal, na Europa democrática e no Ocidente das liberdades e da separação do poder civil do poder religioso, há mais de dois séculos. E mente declaradamente em seu obcecado revisionismo histórico, à boa maneira estalinista e demonizante.


Um belo discípulo de tão luminosos princípios, que nem o CADC subscreveu, chegou a declarar numa abrilada, quando era um jovem instrumentalizado por potências estrangeiras, que pretendia esmagar duma vez a pestilenta cáfila ... ou acabar na gloriosa luta em que estamos empenhados, ou cortar pela raiz o mal que nos afronta, acabando de uma vez com a infernal raça ..., antes que ela acabe connosco. Seis anos depois, com cacetes, forças e alçadas, deixou de haver um aqui e outro ali e regressaram as gloriosas páginas das detenções na Relação para os que não foram para o exílio. Os requintes de malvadez nem excluíram o macabro espetáculo de frades loios e oratorianos se regalarem com doces e vinhos finos, repetindo cenas dos autos de fé.


Vale-nos que os posteriores papas são da estirpe de um Leão XIII, de um Pio XI, de um João XXIII, de um Paulo VI ou de um João Paulo II, e que a esmagadora maioria do povo que os segue faz parte dos homens e mulheres de boa vontade, como os meus avós, os meus pais, os meus vizinhos e os meus compatriotas. Estivemos quase todos num certo comício de Aveiro do ano de 1975, a defender a liberdade da Igreja, em nome de José Estevão, o pai do Luís de Magalhães, ministro progressista e combatente da Traulitânia.


Depois, com católicos, andaram também todos a defender o jornal "República", tal como foram a Braga e à Alameda, aguentaram o emissor da Rádio Renascença na Lousã e defenderam o Patriarcado de Lisboa, sempre com a cobertura operacional do Edmundo Pedro e o conselho do Padre Manuel Antunes, quando meninos do Bispo do Porto, como Francisco Sá Carneiro, militavam no partido de Emídio Guerreiro, José Augusto Seabra ou Nuno Rodrigues dos Santos, enquanto outros chegaram a eleger um menino do cardeal para secretário-geral do partido de Raul Rego. E todos se comprometerem a não "fechar a Igreja na sacristia", a não "ignorar os valores cristãos", a não "fazer tábua rasa de uma cultura milenária, negar a história pátria e secar as suas raízes vitais, mudar o sentido das instituições que dão consistência à sociedade, fechar o homem, por via da educação nas escolas e meios de comunicação social, à dimensão do transcendente”.


Não deixemos que certas irritações de propagandismos fundamentalistas, vindas de congreganistas e anticongreganistas, fechem os outros, que eles desconhecem, nos templos, ignorem os valores da liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade e da fraternidade, não façam tábua rasa de culturas mais do que milenares, neguem a história pátria e sequem as suas raízes vitais, mudem o sentido das instituições que dão consistência à sociedade, fechem o homem, por via da educação nas escolas e meios de comunicação social, à dimensão do transcendente. Os santinhos congreganistas da ACTIC talvez sejam maus conselheiros.


Todos têm direito às mesmas universidades, às mesmas rádios e aos mesmos jornais, porque nenhuma força espiritual pode ter o monopólio da honra, da inteligência, do caminho e da verdade, até para o transcendente. Por mim, continuo a querer militar, muito azul e branco, no partido do Conselho Conservador, do Sinédrio, de Manuel Fernandes Tomás, de Passos Manuel, de D. António Alves Martins (bispo de Viseu) e de Alexandre Herculano, mesmo que seja contra os bobos da Corte que preferem a República de Saló... Até julgo que a Carbonária foi refundada em Portugal para que se combatessem esses horrendos cabrais, que eram maçons e tudo...


A história nunca se deu bem com o preto e branco maniqueísta de certos persas, pintados de propagandistas e vanguardistas, mesmo quando benzidamente missionários. Prefiro a tradição dos homens livres! E ando aqui e ali, em lugares de não poder. Prefiro o poder dos sem poder, Locke, Montesquieu, Burke e o ritmo liberdadeiro de Fernando Pessoa e Agostinho da Silva. Sempre detestei a reação que pretende mandar para a fogueira três quatros dos conservadores e tradicionalistas europeus que não aceitam o preceito monopolista do resignatário, especialista em nihil obstat. Vale mais, ir além do pré-capto e aceder ao cum-capto do conceito. Compreende-se melhor a realidade.




 
VIII

Chegou o tempo de perspetivarmos personalidades como Sebastião José, Gomes Freire ou D. João VI sem aqueles facciosismos historiográficos que deles fazem pretexto para interpretações retroativas ou revisionismos que ora os deificam, ora os diabolizam. Porque todos foram intensamente amados ou odiados, segundo as conceções do mundo e da vida, ou as circunstâncias vindouras. A complexidade dos nossos egrégios avós não pode ser apenas medida pelas lentes analíticas das nossas ideologias, dos nossos medos ou das nossas esperanças.

 
Aqueles que dividem o mundo entre os bons e os maus, entre os patriotas e os traidores, entre os progressistas e os reacionários, não conseguem ascender à necessária serenidade que nos pode permitir sentir a profundidade da tradição, entendida como aquelas algemas que nos podem libertar, permitindo a permanência na renovação das saudades de futuro que vão além de passados ou futuros presentes. A criatividade da história sempre exigiu vivê-la como emergência das três unidades do tempo e sempre implicou unirmos o que anda disperso.

Conheço as peças historiográficas que transformaram Gomes Freire no vazadouro dos impropérios contra o demoliberalismo e que sobre ele lançam o ferrete de traidor. São exatamente os mesmos que nem sequer reparam que Gomes Freire foi vítima de um assassinato político que, apesar de ser processualmente institucionalizado pelo ocupante, não deixa de poder qualificar-se como consequência do terrorismo de Estado.

Gomes Freire, ao liderar o processo conspiratório contra o pretenso protetor inglês, semeou com a sua vida a conseguida regeneração de 1820. Uma revolta inequivocamente nacionalista e liberal que continuou as ideias e a ação do Conselho Conservador e preparou o Sinédrio. Julgo que no século XXI importa compreender as turbulência pós-revolucionária de há dois séculos. E fazer um paralelo entre homens como Gomes Freire e Fichte que, depois de cederem à pretensa "bela ordem" napoleónica, depressa aderiram à fogueira romântica das libertações nacionais e das primaveras dos povos.

Tal como os defensores das perspetivas liberais da unificação alemã e da unificação italiana, há que realçar todos os que promoveram a conciliação da ideia de nação com o sonho da casa comum europeia. E do cosmopolitismo com a o republicanismo, quando este nem sequer era antimonárquico, à maneira de Kant. Porque quem virá a ser a efetiva prisão dos povos será a Santa Aliança que estabeleceu o princípio da hierarquia das potências.

As ideias assumidas por Gomes Freire têm mais a ver com as sementes de direito das gentes que vai ser expressa pelo krausismo, como, entre nós, foi praticado por um Vicente Ferrer Neto Paiva. Por todas aquelas libertações patrióticas do dividir para unificar que geraram os posteriores federalismos de maçons e de católicos, de liberais e de socialistas que, conciliados depois da Segunda Guerra Mundial, constituem os esteios da presente unificação do projecto europeu.

Pais-fundadores da liberdade
Sem Gomes Freire não haveria Fernandes Tomás, D. Pedro IV, Passos Manuel, D. Maria II, Sá da Bandeira, Almeida Garrett ou Alexandre Herculano, bem como muitos outros que o ex-republicano Sardinha há de erigir em mestres. Sem sombra de persiganga e de inquisitorialismo, Gomes Freire integra a honrosa lista dos pais-fundadores do Portugal Contemporâneo, azul e branco, que permitiu mais de um século de continuado liberdadeirismo. Denegri-lo em nome do ódio e do revisionismo histórico é removermos da nossa memória uma das fundamentais pedras vivas da tradição.

Pior ainda: não cultivar com o afeto da emoção esta comunidade das coisas que se amam, chamada nação, é extirparmos reservas morais da pátria e da liberdade. Por mim, seguidor do Conselho Conservador e do Sinédrio, que tanto alinharia no Partido da Bemposta como, por conclusão, teria que ser mindeleiro, depois de falhar a boa intenção de D. Isabel Maria, tenho de honrar Gomes Freire, porque queria evitar que o rei liberal, direto descendente de D. Maria II e de Vítor Emanuel I, D. Carlos, fosse assassinado pela cultura dos ódios terroristas que ainda nos amarfanha. Precisamos de revoluções que sejam restaurações da lusitana antiga liberdade. Precisamos de reaprender a palavra regeneração, conjugada pelos mártires da pátria, como Gomes Freire.


Breve contributo para a necessária limpeza das memórias
Depois de ler mais uns nacos de prosa de um recente José Agostinho de Macedo e a solicitação de um ilustre órgão de comunicação paroquial, junto remeto a lista de um conjunto de cerca de duas centenas e meia de portugueses dos últimos dois séculos que não figuraram no recente inventário pidesco de uma colorida revista semanal de circulação nacional. Pedimos desculpa por nela figurarem dezenas e dezenas de ministros, chefes de governo, oficiais das forças armadas, deputados e outros, de escritores a bispos, de professores a poetas, passando por médicos ou filósofos, entre os quais um abominável prémio Nobel.

Qualquer informação sobre o paradeiro dos próprios ou dos seus não desculpáveis descendentes deve imediatamente ser comunicada ao Grupo de Vigilância do Eles Andam por Aí, a fim de os mesmos serem banidos dos nomes das ruas e das instituições que os homenageiam, bem como de eventuais estátuas e outros sinais desse passado terrível que conduziu à recente crise patriótica. Desde já se informa que foi desencadeada multitudinária petição a apresentar ao Parlamento Europeu, denunciando tanto as heresias como o terrorismo  que nos sustentam.