segunda-feira, 26 de setembro de 2016

III Entre o Meio-Dia e a Meia-Noite



A António Arnaut, pelo lume da profecia que nos deu,
ao captar a revolta e o lume da razão.

Da sombra e do sólido
1. Há duas forças que têm de viver em harmonia e de ser balanceadas, para que a evolução se faça de modo dinâmico, ou progressivo, em complexidade crescente. Sim! Há dois princípios fundamentais cuja interação recíproca promove a criação e a transformação de todas as coisas, quando, por dentro das coisas, as coisas realmente são. O Feminino, a Sombra, ou o Passivo, é o lado Norte da montanha, o que está coberto de sombra, a terra, as qualidades mátrias. O Masculino, o Claro, o Ativo, ou o Sólido, é o lado Sul da montanha, o que está iluminado pelo sol, mostrando expansão e atividade e não apenas integração e padronização. A convergência e a divergência, para a emergência regenere.

Do Meio-Dia e da Meia-Noite
2. Sim, o Meio-Dia precisa da Meia-Noite. A vida precisa da morte. Porque viver é esquecer e olhar a morte de frente. Onde viver é regenerar. Sim! A procura da tensão entre dois polos, ou dois opostos, como o enxofre e o mercúrio, de acordo com as teses alquimistas, defensoras de um regresso à unidade original, à totalidade do mundo maternal e paternal na sua perfeição divina, onde se dissolvem todas as oposições.

Abram as janelas, quero ver as árvores
3. Releio Bulhão Pato, em testemunho sobre os últimos momentos de Alexandre Herculano. Lá estão as últimas palavras do Mestre. Primeiro o "– Isto dá vontade de a gente morrer." Momentos depois: "– Os de casa, coitados, andam com a cabeça perdida. Dê uma vista de olhos àquilo lá por baixo, para que arranjem a ceia. Veja os melões. Este ano são magníficos." E, por fim, antes do fim: "– Abram a janela. Quero ver as árvores."

Do centro imóvel ao espelho
4. Sim, o centro imóvel do universo, simboliza a eternidade. O coração do Cosmos, tal como aquilo que simbolizamos por Deus é o coração do universo. Por outras palavras, a representação do disco solar e dos seus raios exprime a energia religiosa do homem. Até no xintoísmo japonês, onde o sol é representado por um espelho.

De Nascente a Poente
5. Foi logo no século IV que as igrejas cristãs passaram a voltar-se para poente, embora o sacerdote celebrante se virasse para Oriente, até ao Concílio do Vaticano II. Não tarda que seja visto como o Cristo-Apolo no centro do Zodíaco. Se Fénix era a ave do sol, muitos são os animais que lá se situariam (leão, águia, pelicano, touro, cavalo branco, cordeiro e galo).

Cavalo de fogo
6. Também Elias, tal como Mitra, subiu ao sol num cavalo de fogo. E o carro de sol, também o era o do deus grego Apolo.

Magistério
7. Raimundo Lúlio chega mesmo a proclamar: o sol é o pai de todos os metais e a lua, a sua mãe, enquanto a lua recebe a sua luz do sol. Destes dois planetas, depende todo o magistério. De magis, do mestre, o que sempre foi mais do que o minis, de ministerium, o escravo da função. Um cria, outro executa. Porque há sabedoria, beleza e só depois força. Para que não haja força sem beleza e ambas sem sabedoria.

Revelação espiritual
8. E Marsílio Ficino (1433-1499), o tradutor do Corpus Hermeticum, quando o antigo culto solar assumiu nova projeção, considera que o Sol é a progressão crescente de Deus, é a luz divina, a revelação espiritual e o calor divino.

Esfera do equilíbrio
9. Para R. Fludd, é o centro do macrocosmos, situando-se no ponto de intersecção da pirâmide da luz com a pirâmide das trevas, assente na chamada esfera do equilíbrio

Do centro espiritual
10. Tratar-se-ia, aliás, do centro espiritual do universo, mas não do centro mecânico deste, que continuaria a ser a Terra.

O sol é apenas macrocósmico
11. Porque a sublimidade e a perfeição do Sol macrocósmico são claramente reveladas quando Febo real se senta no seu carro triunfal mesmo no centro do firmamento e deixa esvoaçar os seus cabelos dourados. Único soberano visível, detém nas suas mãos o cetro real e todo o governo do universo.

Desmistificar, mas não demitificar
12. Com efeito, mesmo depois de Kepler e de Copérnico (1473-1543), o culto do Sol não deixou de assumir dimensões místicas.

Maçonaria é o que os maçons devem fazer
13. Logo, tentar dizer o que deve ser um maçom no século XXI da era vulgar, é tratar apenas da superfície das coisas. Porque a maçonaria é aquilo que os maçons fazem. Quando fazem o que deve ser. Sobretudo, quando precisam que a reta endireite a vara torta e a luz ilumine a treva. Porque a luz precisa da treva. O sol, da lua. Nós, dos outros. De todos os outros. Para nos diluirmos em todos os outros. Porque, por dentro das coisas, é que as coisas realmente são. E somos. O que está cá em baixo, o anthropos, é como o que está lá em cima, o macrocosmos, onde o homem é o microcosmos e a abóbada celeste, o macro-anthropos.

A treva do autoritarismo de rebanho
14. Porque temo o regresso àquele autoritarismo de rebanho que vive na tristeza do temor reverencial. Quando os detentores do poder não conseguirem compreender como se vai acumulando a explosividade da revolta que, numa qualquer encruzilhada, pode ser rastilhada por um qualquer acaso procurado, como se traduzem as nossas habituais crises. Só que a próxima será importada dado que muitos dos fatores de poder, os maioritários, já não são nacionais...Presos à pilotagem automática de uma governança sem governo, que se desculpa com a integração europeia e a globalização, deixámos enrodilhar-nos por todos quantos detestam o empreendedorismo e o sentido do risco. Há uma massa cada vez mais inerte e desorganizada que não consegue ser mobilizada para o bem comum, entregando-se alienadamente ao chicote e à cenoura do verticalismo hierarquista do estadão que continua a tática do enquanto o pau vai e vem, folgam as costas.

Esconjurar o avô-tirano
15. Caso não esconjuremos este avô tirano, nunca repararemos como é impossível, pela natureza das coisas, um qualquer salazarismo democrático, porque um regime misto, como deve ser a democracia pluralista do Estado de Direito, nunca pode fazer desabrochar as sementes da ditadura, incluindo a tecnocrática ditadura das finanças.
Mesmo o apelo ao anticapitalismo, quando já não há soberanismo, é mera droga ideológica que não nos cura de uma doença que precisa urgentemente de um direito público universal, e não das ilusões albanesas.

Séculos de persiganga
16. Vivo num aqui e agora de quatrocentos anos de Inquisição, com persigangas, fogueiras, bufos e dissimulações, restauradas por sucessivas Viradeiras, a última das quais se vestiu de salazarismo, essa soma de inquisidores de gabinete e sacristia com o policiesco torturador de Pina Manique ou a ordem da cavalariça, onde dezenas de milhares de moscas viviam da denúncia anónima, em nome da luta de invejas, a mesma que o PREC restaurou sob a forma de saneamentos, pedindo ao aparelho de poder para excluir da cidadania o vizinho, o colega ou o parente. Hoje, vestidos com o verniz da democracia, mudámos o aspeto do bufo e instrumentalizámos o aparelho de poder, sobretudo a nível da espionite e da processualização.

Lusitana antiga liberdade
17. Nenhuma dessa gentalha gosta da cultura do antes quebrar que torcer, da lusitana antiga liberdade, e por isso, contra a autenticidade da cidadania, o poder nu, das instituições sem ideia de obra, manifestações de comunhão entre os seus membros e total desrespeito das regras do Estado de Direito, continua a mobilizar toda a herança do inquisitorialismo, com a permanecente procissão dos bufos que sonham, todos os dias, com os autos de fé da terra e dos corpos queimados...

Falta revolta dos escravos
18.  "Os escravos são tão culpados quanto os tiranos. É difícil de dizer se a liberdade poderá reprovar mais justamente aqueles que a atacam do que aqueles que a não defendem" (Beaumarchais).

Os inimigos são heréticos
19. "Enquanto houver inimigos, reinará o terror, e haverá sempre inimigos, enquanto o dinamismo existir e para que ele exista. Os inimigos são heréticos; devem ser convertidos pela prédica ou pela propaganda; exterminados pela Inquisição ou pela Gestapo" (Camus)

Os Pirinéus que não existem
20. "Vérité dans un temps, erreur dans l'autre" (Montesquieu, Lettres Persannes). Dizem que o modelo social europeu está morto. "Vérité au deçà des Pyrénées, erreur au delà. » (Pascal). Os Pirinéus não existem. Dependem das campanhas eleitorais dos que querem saltar ao Eixo.

Utopia das margens, a receita de escravos
21. Dizia, há tempos, uma alta figura de estadão para outro, pouco frequentador da Corte: "você é engraçado, é pena ser tão radical". O primeiro figurante, excelente discursador de esquerda, converteu-se em consultor plural de várias parcerias, onde é ilustre parceiro pensador. E que bem comenta. O segundo nunca foi de esquerda, está farto da direita e defende os radicais do centro excêntrico. Confirmo: o situacionismo tem todo o interesse que os insatisfeitos se encaminhem para a utopia das margens. Mas pode acontecer que a maioria sociológica deixe de frequentar a esplanada do Bloco Central e procure saber o que é que a boneca tem dentro. Pode vir a mudança...

Ir de consciência em consciência, subvertendo
22. O maior poder de subversão da desordem instalada não reside nas jogadas de Corte ou no controlo da informação, mas antes no clássico processo do ir de consciência a consciência, de centro a centro, em termos de exemplo e de convicção. Quando a comunidade dos que pensam de forma racional e justa atingir o consenso não há chicote que chegue nem cenoura que compre. Sucederá a inevitabilidade da emergência, mesmo que se mantenham anteriores convergências e divergências. Teilhard de Chardin apenas precisou o "Space-Time" de Samuel Alexander.

O primado da alma
23. Segundo Weber, a moral da convicção (Gesinnungsethik) incita cada um a agir segundo os seus sentimentos, sem referência às consequências, diz, por exemplo, para vivermos como pensamos, sem termos de pensar como depois vamos viver. Difere da moral da responsabilidade (Verantwortungsethik). A segunda apenas interpreta a ação em termos de meios–fins e é marcada pelo supra-individualismo, defendendo a eficácia de um finalismo que escolhe os meios necessários, apenas os valorando instrumentalmente, dizendo, por exemplo, como em Maquiavel, que a salvação da cidade é mais importante que a salvação da alma.

Do fator imprevisto
24. A intelectualice que emiti tem a ver com duas conversas que me chegaram. A primeira, de um velho patriarca da esquerda, sobre a instrumentalização de um velho direitista, dizendo que o deviam usar porque ele era inofensivo, vaidoso e até dava jeito. A segunda de um novo direitista no poder, dizendo exatamente o mesmo de um esquerdista. Ambos têm razão enquanto a não perderem. Com o fator mais criativo da história da humanidade: o imprevisto que produz mudanças.

Os deslumbrados do hierarquismo
25. Quando o poder instalado se estreita absolutamente na rede dos micropoderes que já sustentaram o anterior sistema de feitores e capatazes, quem manda apenas mostra que é mandado pelos tradicionais donos do poder. E não há mobilização nacional que passe por este buraco da agulha. Estamos sob o fio da navalha. Já não somos camelos bíblicos nem estamos sobre o mesmo fio. Está frio. O do cadáver adiado que, um quarto de hora antes, emite notas oficiosas. Ele apenas manda, para que os deslumbrados emitam sentenças de hierarquismos pretensamente insubstituíveis, como os da paz dos cemitérios.

Imaginação politicamente científica
26. Isto precisava de uma imaginação politicamente científica e não dos habituais cadáveres adiados que não assumem a loucura de quem quer grandeza.

Hipocrisia
27. O elemento mais marcante do salazarismo sempre foi a hipocrisia. Pior: o paradoxo de se fazer um discurso contra a hipocrisia a fim de se fazer ainda mais hipocrisia. Isto é, teorizando-se a necessidade da autenticidade, atingiu-se o exato contrário daquilo que se foi proclamando. E tudo se disfarçava com as mãos papudas do salamaleque de salão, com a cadeirinha de coiro preto, sacanamente posta para o tolo do gabiru julgar que o assassinato podia ser gratificante. Sempre na solenidade ritual de gabinetes grandiosos, onde a luz esguia dos candelabros, o óleo frio dos quadros épicos e o retorcido das escrivaninhas, nos parecia transportar para a delícia cultual dos livros de carneira cheios de bicho, cheirando ao mofo dos inquisidores da treta.

As mãos desinfetadas da legalidade
28. O chefe supremo tem sempre as mãos higienicamente desinfetadas, porque ele apenas é mais um desses honestos que, infelizmente, tem que gerir uma plebe de intermediários desonestos, desde a bufaria dos serviçais que esperam ser promovidos, à minoria dos jagunços violentistas, numa rede que só é eficaz se o vértice continuar a parecer o exato contrário daquilo que o conjunto é, na realidade. O nosso yes, minister não é apenas uma sátira para série humorística, dado que ainda transporta os punhais assassinos que nos violaram, nesses colossais edifícios de gigantescas colunas amedrontadoras, nesses longos átrios que poderiam servir para cadaverosas exéquias, onde ameaça sempre soprar o gélido vento da morte, enquanto neles vão desaguando os passos perdidos de labirínticos corredores que sempre nos fazem lembrar hospitais-prisões 

Os engenheiros do absolutismo
29. E nesse arquitetónico feito pelos engenheiros do absolutismo, a solidão do indivíduo, que resiste em suas crenças, quase se transforma em medos enregelantes. Sobretudo, em agrestes noites de invernia, quando as diluídas luzes de néon contrastam com as saudades do diurno e luminoso sol, dessa memória de força que nos vai despertando a vontade de fugirmos para bem longe desta prisão dos tempos cronometrados. Porque a liberdade e o movimento estão lá fora, rimam com rua, rimam com povo, com esse povo proibido, que continuam a comprimir em filas de autocarro, em ditaduras de relógios de ponto, horas para entrar, horas para sair, horas para almoçar, segundo o ritmo da burocracia cinzenta, planificada, avaliadora

Do povo proibido
30. Porque a liberdade e o movimento estão lá fora, rimam com rua, rimam com povo, com esse povo proibido, que continuam a comprimir em filas de autocarro, em ditaduras de relógios de ponto, horas para entrar, horas para sair, horas para almoçar, segundo o ritmo da burocracia cinzenta, planificada, avaliadora. Por isso apetece peregrinar pelos exílios que podem ser e sempre estão à nossa espera.

Da honra
31. Há desafios que só podem ter daquelas respostas imediatas assentes na intuição que nasce da honra e apenas é comandada pelo lume da profecia, mas com um discurso daqueles que têm o sangue frio dos que sabem manejar a racionalidade em pleno olho do furacão. Porque é em plena crise, acompanhando o movimento das circunstâncias, que podemos evitar ser arrastados pela tempestade.  Não para domarmos os ciclones, mas para podermos continuar a domar-nos a nós mesmos, garantindo a resistência da nossa autonomia e tentando continuar a viver como a nós mesmos nos pensamos.

Da sabedoria
32. Sol tem a ver com o ovo cósmico, sendo equiparável ao Yin-Yang, enquanto signo da totalidade, porque cada ser tem de assumir-se, ao mesmo tempo, como o masculino e o feminino. Sim, como Jakob Böhme, o homem primordial, o Adão andrógino, ao mesmo tempo um homem e uma mulher de raça muito pura. Podia gerar livremente por partenogéneses e possuía um corpo que podia trespassar árvores e pedras. O tal feminino que dormia com ele era a sua esposa celestial, a Sabedoria, aquilo que William Blake (1757-1827) vai chamar Emanação. Ao cometer o pecado original, imaginou-se no mundo exterior, perdendo o corpo astral luminoso e convertendo-se em larva, pelo que passou a viver uma vida sombria e irreal, na vertente masculina.

O nosso tempo de ciência, poético e transcendente situado
33. O tempo maçon nada tem a ver com o curto-prazo dos maquivélicos detentores de um poder que precisa de ser pactado pelas pequenas e médias oligarquias das assembleias das pequenas e médias oligarquias. Os mandarins passam, as obras trabalham-se. O próprio Copérnico que, a partir de 1507, apoiando-se em autores antigos como Aristarcos de Samos, Heraclides Ponticus ou Nicetas de Siracusa, em De Revolutionibus Orbium Caelestium, de 1543, não nos deixa sem este louvor hermético, quando a ciência não cortava com o poético e o transcendente, mas situado: No centro de todas as coisas reside o Sol. Seria possível encontrar um lugar melhor no mais belo de todos os tempos, cuja luz é capaz de iluminar todas as coisas imediatamente? É com razão que lhe damos o nome de lâmpada, espírito, de senhor do universo. Para Hermes de Trismegisto ele é o Deus invisível, e a Electra de Sófocles chama-lhe Aquele-que-tudo vê. E assim o Sol está sentado no seu trono real e guia os seus filhos, que o rodeiam.

18 de Abril de 2012, da era vulgar.
Prancha no primeiro aniversário da loja Sol