Da Tirania
Definir ditaduras em
Portugal, onde a avenida da Liberdade, a que, muito bem, começa nos
Restauradores, mas é interrompida pela estátua de um déspota, inaugurada
solenemente, já em ditadura, no século XX, pode parecer um paradoxo. Sobretudo,
neste nosso tempo, em que surgiu, pela primeira vez, um papa dos jesuítas, que
certamente não desconhece que Sebastião José autorizou a Inquisição a queimar o
Padre Gabriel Malagrida
Da marquesa de Alorna
Eu prefiro saudar a
Marquesa de Alorna, agente em Portugal dos vendeianos, fundadora da Sociedade
da Rosa, em que participava Bocage. Neste nosso tempo em que não podemos
esquecer o massacre de cinco mil habitantes da Trafaria, aldeia feita fogueira,
ateada pelo agente de Pombal, Pina Manique.
Da razão de Estado
Sobre o déspota apenas
continuo a seguir o perfil que dele traçaram o maçon Camilo Castelo Branco e o
republicano Guerra Junqueiro. Infelizmente, grande parte da literatura de
justificação de liberais, republicanos e muitos maçons, contina a
desculpabilizar Sebastião José, considerando que os fins por ele prosseguidos
justificaram os meios por ele usados.
... ao terrorismo de Estado
Tudo em nome da clássica
razão de Estado que mais não é do que um terrorismo de Estado, a coberto do
terrorismo da pretensa razão. Quase como certos patriotas conservadores que
desresponsabilizam Salazar em nome de um pretenso bem comum.
O reformador e o ditador-filósofo
Até aqui nesta minha
cidade natal se invoca Pombal por causa da reforma da universidade. Tal como se
venera um dos seus alunos de Santa Comba, porque ele gostava que os alcunhassem
como o ditador filósofo.
Dos amigos dos meus inimigos
Como se o despotismo, só
por dizer iluminado, ou se invocar como esclarecido, deixe de ser despotismo. Os inimigos dos meus
inimigos … não é por isso que passam a ser meus amigos. Até porque nos podemos
enganar quanto às inimizades.
Livro único, método único, livros proibidos
Aqui em Coimbra, devo
recordar que foi Pombal quem consagrou infelizmente o conceito de livro único,
de método único e de livros proibidos. Paradoxalmente até proibiu, como
monarcómacos e republicanos, os próprios autores que estiveram na base da
restauração de 1640, como João Pinto Ribeiro e Francisco Velasco Gouveia.
Monarcómacos e republicanos
Argumentava que eles
copiavam as teorias neotomistas dos jesuítas da neo-escolástica, como o grande
professor da Rua Sofia, o jesuíta e espanhol Francisco Suárez, que aqui
publicou uma das mais célebres obras políticas de todos os tempos, o De
Legibus, de 1612.
João Pinto Ribeiro e Francisco Velasco Gouveia
Chegou a altura de a
democracia portuguesa se libertar de certa memória despótica, maquiavélica e de razão de Estado. Chegou até a hora de violarmos o decretino pombalista que
continua em vigor. Porque nunca mais publicámos João Pinto Ribeiro e Francisco
Velasco Gouveia.
Más memórias do 28 de Maio
Por isso é que não
gostamos de ler que a maioria dos golpistas do 28 de Maio era de republicanos e
o comité revolucionário de Lisboa era praticamente do Grande Oriente Lusitano Unido.
Como não queremos
compreender que o pior símbolo do Estado Novo, a polícia política, com a
tortura e a bufaria, teve como fundador e conformador o capitão Lourenço,
republicano e maçom.
Ignorância,
fanatismo e tirania
A tolerância não nos
impõe o não esquecimento face aos três tradicionais inimigos da liberdade: a
ignorância, o fanatismo e a tirania. Como nos deve evitar a ajudar a continuar
a confusão entre os honestos e os corruptos.
Da corrupção
Porque continua a ser
corrupção quando os honestos escolhem colaboradores corruptos e governam pela
corrupção, dizendo, provando e manifestando que são pessoalmente
incorruptíveis. São como os desonestos que escolhem colaboradores honestos.
Estatismo, despotismo ministerial e centralização uniformista
Pombal e Salazar são
três coisas: estatismo, despotismo ministerial e centralização uniformista. Um
plano único para a construção da cidade, de preferência depois de um terramoto,
com a edificação dos próprios nichos onde a criatividade futura poderá pôr
estátuas.
Um foi pré-romântico.
Outro foi antirromântico. Ambos foram engenheiros sem sonhos. Glaciares,
metódicos, fugazes. Ambos eram dotados de uma psicologia totalmente contrária à
do homem comum português. Como se fossem efetivamente estranhos e
estrangeiros, à maneira dos ocupantes que nos dizem trazer uma bela ordem
exógena. Seja Junot ou a Troika.
Ambos usaram e abusaram
de colaboracionistas e da técnica da bufaria. Como o vai repetir el-rei Junot
com o Loison a mandar-nos para o maneta. Ambos assentaram no mesmo lastro
inquisitorial que, em nome da luz, nos trouxeram as trevas da servidão
voluntária e de uma pretensa revolução, feita de cima para baixo, não faltando
sequer o requinte da subversão a partir do próprio aparelho de Estado, como o
tentou a fase salazarenta do PREC.
O despotismo gosta de
ser louvaminhado como monopólio da inteligência, afinado pelo método dogmático
do catecismo, da propaganda pela obra público e pelo ferrete do SS, do serviço
e do sacrifício.
Por erro, por manha ou
por engano, o posterior liberalismo, temendo a nebulosa do congreganismo do
clero e a oligarquia da nobreza, levou a que se fizesse a literatura
de justificação de um corrupto que, a partir do vértice do Estado, se alavancou
com títulos, donatorias e rendas, nomeando uma rede de parentes e clientes para
o controlo do país, não faltando o recurso aos soberanos inquisidores.
Infelizmente, por falta
de autocrítica, certa maçonaria liberal e adogmática, não tem denunciado com
suficiente vigor o déspota. Preferiu a tética à estratégia, aproveitando o
centenário de 1882.
Um
neodogmatismo pretensamente antidogmático
E assim se gerou um
neodgmatismo pretensamente antidogmático, admitindo-se desta forma uma via
antiliberal para o liberalismo. Uma falácia maquiavélica acabou por beneficiar
o infrator em cheio, isto é, o maior déspota do nosso século XX, Oliveira
Salazar.
O mestre de propaganda
de uma pretensa república de catedráticos, em nome de quem se foi mesmo
catedráticos nunca se doutorou, confrontando o paradigma de um cursus
honorum.
As malhas
que a propaganda foi tecendo
As malhas que a
propaganda foi tecendo, ainda nos têm conturbado a luz, pelas teias de aranha
dos absolutismos de facto. Exatamente os mesmos que não deixaram que o nosso
Primeiro de Dezembro de 1640 se tivesse volvido na primeira revolução
democrática do espaço atlântico, antes das revoluções inglesa, norte-americana
e francesa.
Rolo
compressor
Sempre em nome da
atração pelo vértice da centralização e do estadualismo uniformista. O mesmo
rolo compressor que não nos deixou desenvolver as sementes da primeira
revolução pós-feudal da Europa, a de 1383-1385, entre Aljubarrota de São Jorge,
e as Cortes de Coimbra de João das Regras e do princípio democrático do QOT (quod
omnis tangit, o que a todos diz respeito, por todos deve ser respeitado.
Fatores democráticos da formação de Portugal
Aquela fibra multissecular dos fatores democráticos da formação de Portugal, segundo Jaime Cortesão, de Ançã. Sem os quais não pode frutificar aquilo que Alexandre Herculano qualificou como a vontade de sermos independentes, o somos independentes apenas porque o queremos.
Aquela fibra multissecular dos fatores democráticos da formação de Portugal, segundo Jaime Cortesão, de Ançã. Sem os quais não pode frutificar aquilo que Alexandre Herculano qualificou como a vontade de sermos independentes, o somos independentes apenas porque o queremos.
Afonso Costa não teve
tempo para ser déspota. Foi denunciado pelos próprios republicanos. Vasco
Gonçalves não teve espaço para ser déspota. Foi corrido pelo próprio MFA, desde
o Grupo dos Nove a Otelo.
O problema não está em
voltar a haver gente que queira ser déspota. Haverá sempre. O problema não está
em voltar a haver gente que invoque a necessidade de um déspota. Haverá sempre.
Haverá sempre quem alcançando o poder ilimitado, se assuma como boa pessoa, com
as melhores ideias do seu próprio tempo, com o apoio de uma legião de escribas
que o louvaminho e de uma sociologia com vontade da servidão voluntária.
O abuso do
poder
Como avisava o maçom
Montesquieu: qualquer homem que tenha o poder, tende sempre a abusar do
poder que detenha, invocando, quase sempre bons princípios. Até poderá em nome
do bem dar aos adversários uns safanões a tempo, como Salazar dizia dos
serviços da PIDE.
A culpa
não pode morrer solteira
O pior é que esse homem
pode até mandar matar os adversários. E matar mesmo. Como o fez Pombal. Como o
fez a Pide ao chefe da oposição em 1965, o general Humberto Delgado, sem
dúvida, um dos mais abjetos crimes comuns da ditadura, felizmente derrubada em
1974. A culpa, também para as ditaduras, não pode morrer solteira. Não, não
estou a denunciar os que depois de 1974 voltaram a ser adesivos e vira-casacas.
Estes ao menos mostram o periscópio de ministros, secretários de estado e
subsecretários do regime do partido único.
Os arrependidos são bemvindos
se vierem siceramente. O problema é se continuarem pequenos déspotas nas zonas
reservadas do respetivo micro-autoritarismo subestatla, candidatos a sucessores
do déspota máximo, em nome dos ultras, contra a possibilidade de transição em
primavera.
Os que foram autores de
antigas doutrinas sobre a traição à pátria, transformada em jurisprudência
dos tribunais plenários. Ou os criadores dos campos de concentração em
arquipélago. Ou os autores dos decretos que expulsaram colegas da função
pública, só porque estes, no lugar próprio, do conselho escolar, verberaram a
atitude do senhor ministro da educação nacional.
Há muitos deles que
continuam a ter procissões de louvameinheirismo, em muitas zonas da nossa
democracia, só porque alguns oportunistas os convidam, nomeiam, procurando uma
aliança que consiga expulsar a competência do Estado racional-normativo, em
nome da fidelidade e da consequente razão do neofeudalismo e do patronato.
A que, disfarçando o
terrorismo de Estado em nome do terrorismo da razão, nos continua a amarfanhar.
Só porque quem cala nada diz, embora pareça consentir.
O Estado
terrorista
Porque o Estado tanto é
terrorista quando se volta para o exterior quanto, voltado para o interior,
exerce a colonização ou a repressão. O que precisa sempre de inventar inimigos.
Porque enquanto houver inimigos a revolução continua. Basta espreitarmos alguns
escritos de certa bibliografia de encómios, com citações e nomeações mútuas.
Assim compreenderemos a revolta dos que consideram que a tirania é a própria
suspensão da política e o regresso à violência doméstica do paterfamilias,
a quem se atribui o ius vitae necisque, o direito de vida e de morte sobre
os membros da casa. Casa que em latim se diz domus e onde o poder
absolutos do dominus, donde veio o nosso dono. Casa que em grego se diz oikos,
e onde o dono se chama oikos despote, donde veio o déspota.
Inventámos
a política para deixarmos de ter um dono
Porque nos esquecemos
que apenas inventámos a política, enquanto sinónimo de democracia e de
república, precisamente, para deixarmos de ter um dono na praça
pública, no espaço que vai além do doméstico. Como dizia Plínio, dirigindo-se a
Trajano.
O Estado
de exceção
Hoje o déspota, como
dizia Walter Benjamin, é o que decide em estado de exceção. O aparente
provisório que se torna definitivo, nuns provisórios definitivos e
definitivamente provisórios, como as ditaduras das finanças. Os que só caem da
cadeira, ou na banheira, ou a serem desterrados para Pombal, estando ambos
podres.
Usurpadores
do nome povo
Entretanto, vão
usurpando o nome de povo. Por exemplo, quando adotam em plebiscito, uma
constituição, onde as abstenções contaram como votos a favor. Ou quando
imediatamente a suspendem, por decreto do ordinário, em nome de circunstâncias
extraordinárias. Por exemplo, em nome de um parágrafo único que permitia a
suspensão do corpo do artigo sobre direitos, liberdades e garantias da mesma
falsa constituição de 1933.
Estado de
legalidade não é Estado de direito
E até levam à confusão
entre o Estado de Legalidade e a não assimilada ideia de Estado de Direito. Num
regime onde até se protegiam as medidas de segurança como legalidade.
Ou se as mais ferozes
repressões policiescas se reduziam a relatórios perfeitamente legais e
hierárquicos. O dura lex, sed lex, como se lê no palácio dito da justiça,
aqui edificado pela ditadura, não coincide com a justitia. Porque o regulamento
e a lei são inferiores ao direito e até o direito está dependente da justiça. Qousque
tandem Catilianam abutere patientia nostra?
Da tortura
Não nos esqueçamos até
daquilo que Raymond Aron como a difícil herança de qualquer guerra colonial, de
subversão ou de contrassubversão. A potência dominante, ocupante ou
colonizadora, aquela onde se situa a sede da soberania, ou metrópole, deixa que
os respetivoa aparelhos militares, administrativos e de segurança, bem como as
milícias militarizadas que eles favoreceram, usem da tortura face ao inimigo,
dito revolução, ou libertação, tentando evitar que ele se sinta como peixe na
água, entre a população civil.
Do
terrorismo
Em contrapartida, os
ditos bandoleiros, ou bandidos armados, a quem nunca se declara guerra formal,
usam do terrorismo, em nome da luta pela libertação. Se todas as guerras são
inconscientes pelos seus mortos, a mais dramática das formas de guerra civil ainda
é mais especialmente inconsciente. Porque quase todos têm um irmão-inimigo,
onde eu sou soldado e ele é guerrilheiros. Uma guerra onde, afinal, fomos ambos
peões do xadrez de uma mais ampla guerra dita fria, mas com secções de guerra
quente que foram meras guerras por procuração de duas superpotências cobardes.
Guerras que, aliás, continuaram e até se agravaram depois da retirada das
forças portuguesas do teatro de operações.
Pombal e Salazar são
históricos tiranos. Déspotas que cresceram sobre a ignorância e o fanatismo.
Tenho de Carvalho e Melo ideia contrária à dos jacobinos e salazarentos.
Subscrevo Camilo Castelo Branco e Guerra Junqueiro.
O massacre da Vendeia
veio depois, entre 1793 e 1796. O Terror, ou o terrorismo de Estado, também
veio depois. Eu sou vendeiano, como a Marquesa de Alorna. O massacre da Vendeia
em Portugal é anterior e bem mais rápido. Foi o da Trafaria. Levado a cabo por
Sebastião José de Carvalho e Melo. O déspota que interrompe a nossa Avenida da
Liberdade. Cinco mil vidas numa só fogueira. "Um brutamontes raciocinando
claro. Falta-lhe o génio, o dom de sentir, nobreza heroica, vida profunda, -
humanidade, em suma. Máquina apenas. Não criou, produziu. A criação vem do
amor, a génese é divina. Criar é amar. ... Só dura o que vive. Uma raiz esteia
mais que um alicerce" (Guerra Junqueiro)
"Pombal em três
dias, num deserto quis formar um bosque. Como? Plantando traves. Adubou-as com
mortos e regou-as com sangue. Apodreceram melhor. "(Guerra Junqueiro)
Os liberais não podem desculpar
Pombal. Os conservadores não podem desculpar Salazar. Devem relembrar a Marques
de Alorna, do partido dos Távoras. O atual papa, do partido dos jesuítas. E
defender o povo massacrado, da Trafaria. Pina Manique passa-se sempre para a
Viradeira, mas eu não esqueço o carrasco, mesmo com a criação da Casa Pia. E os
primeiros chefes da polícia política do salazarismo vieram do republicanismo.
Basta atentarem na
biografia de Agostinho Lourenço (desta, não consta tudo...) As constituições
servem para transformar as violências das revoluções em paz pelo direito, mas
conservam o dever ser da subversão da justiça.
A estrela do norte da
política é a justiça. Que é o mais político dos valores, quando dá a cada um o
que é seu, exigindo, de cada um, conforme as suas possibilidades, para dar a
cada um conforme as suas necessidades. No meio, há sempre imposto. A justiça é
o velho e novo nome da igualdade. Que implica tratar o desigual, desigualmente.
O problema sempre foi o mesmo: o critério para aferição das desigualdades
depende das ideologias, programas e doutrinas.
Só quando o homem for
anjo é que deixará de haver política, mesmo quando alguns querem ser anjos e,
fazendo anjinhos, se tornam bestas. Eu nunca fui revolucionário. Continuo a
subscrever que a revolta é mais importante que a revolução. Porque pensar é dizer
não. Até à revolução.
Há quem sempre tenha
dito que há atos de violência menos violentos que os próprios estados de
violência. Basta consultarmos a literatura de justificação da autodefesa, com
que se costuma ornar o terrorismo, incluindo o terrorismo de Estado. O recente
vídeo de uma conhecida banda, que aqui não divulgo, é manifesto quanto à
insinuação do uso da violência como forma de luta política, com pistolas reais,
tendo, como alvos, políticos presentes e passados, num fundo onde aparecem as
principais instituições constitucionais e um templo. O título é elucidativo e
pouco simbólico: "pelo meu relógio são horas de matar".
Um povo de
magnicidas
É antidemocrático não se
banir para sempre o apelo ao magnicídio, como aconteceu com o regicídio (1908),
o assassinato de Sidónio (1918), a Noite Sangrenta (1921) e o assassinato de
Delgado (1965). Quem com a pistola brinca, pode acabar por matar.
Sobretudo, num povo que
foi dos mais magnicidas do mundo no século XX. Quando os rotativos do
situacionismo do dito arco do governo dissertam sobre a apatia, sem
autocrítica, dizendo que ela é melhor do que o voto nas frentes nacionais e nas
esquerdas revolucionárias, apenas digo que está tudo dito por quem nem ao
espelho se olha.
Não há machado estadual
que deva cortar a liberdade de expressão de pensamento de um qualquer cidadão,
tenha ele a opinião que tiver. Um inimigo da democracia pode
proclamar o que pensa. Um traidor à pátria também o pode expressar.
Até Deus se deve discutir, bem como a extremada crença que é o ateísmo.
Os diabos
e os deuses estão além do pensamento
Eu nunca acredito muito
no diabo, quando ele define as crenças dos que se assumem como partidários do
divino. Ou vice-versa. É que os diabos e os deuses estão além do pensamento.
Não precisam dele para serem o que são. Só os humanos são imperfeitos. Porque
caem e se levantam. Sonhando para que a obra nasça. Os inspiradores,
regulamentadores e polícias do pensamento criam teias onde eles próprios se
enredam, queimando-se na fogueira que atearam, para se queimarem os outros. O
Estado não pode ter capacidade decretina para, de forma ordinária, fixar
conjunturalmente quem são os seus inimigos, estabelecendo definições dos
mesmos.
Um país
unânime numa opinião ou num hábito seria gado
Estou farto dos
filósofos da traição, dos teóricos do anticristo, dos caça-fascistas, dos
detetores de pedreiros ou dos especialistas em criptocomunismo. Um país unânime
numa opinião ou num hábito, não seria país, seria gado. Tivemos moscas, tivemos
formigas, tivemos bufos. E até alguns vigilantes revolucionários passaram a
polícias de defesa do Estado. São diretamente proporcionais aos adesivos e
vira-casacas.
Que Deus
escreva direito por linhas tortas
Quando sua excelência,
do despotismo ministerial, diz que quem não é por mim é contra mim, ou que quem
não é contra mim está a favor de mim, eu posso desobedecer a esse monopólio da
palavra pública, a que diz tudo no Estado, tudo pelo Estado, nada contra o
Estado, sempre a bem da Nação. Prefiro que Deus escreva direito por linhas
tortas, porque a lealdade pode ser feita em oposição, sendo, ortodoxamente,
heterodoxo. Com Saúde e Fraternidade e os Melhores Cumprimentos. Nada
contra a Nação. Tudo pela Humanidade.
Uma burguesia corrupta
Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula,
não discriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem caráter,
havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em
pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da
mentira a falsificação, da violência ao roubo, donde provem que na política
portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos,
absolutamente inverosímeis no Limoeiro. (Guerra Junqueiro)
Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções,
incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo cético e pervertido, análogos
nas palavras, idênticos nos atos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo
zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no
parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar. (Guerra Junqueiro)
Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio,
fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas,
sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes,
a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as
moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem
onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é
bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo
misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta (Guerra Junqueiro)
Salazar, numa entrevista
a António Ferro, confessou que gostava de ser primeiro-ministro de um rei
absoluto. Por outras palavras: que gostava de ter sido um João Franco de um D.
Carlos que não tivesse sido o último e que pudesse fazer regressar a nossa
monarquia aos tempos de um Piedoso, com o estabelecimento de uma nova
inquisição, instaurando um paternalismo e um despotismo ministerial.
Apenas conseguiu atingir
a dimensão do manholas, entrando no comboio da ditadura dos republicanos,
quando a partir da tecnocracia de uma ditadura das finanças, saltou para a
cabeça das locomotivas. Por outras palavras a dita revolução nacional não
passou de uma das nossas habituais pós-revoluções que duram. Até se constituiu, a
posteriori, um partido único, a partir de um decreto do conselho de ministros,
à imagem e semelhança do primeiro partido católico, o CCP, Centro Católico
Português, instaurado em 1917 por resolução da Conferência Episcopal
Portuguesa. Com algumas semelhanças dos atuais partidos dominantes, também eles
com o privilégio criativo de serem chamados ao governo provisório por Spínola e
pelo MFA, no regime de salvação nacional, entre os cravos e o monóculo.
Porque o PS e o PPD não
passavam de grupos de amigos de Mário Soares e de Francisco Sá carneiro. E o
PCP não passava de uma ordem religioso-militar com três mil militantes, tantos
quanto tinha, então, a esquerda ML. Mas foram os três grandes, com o CDS só no
Conselho de Estado que então repartiram a nomeação de governadores civis e de
presidentes das comissões administrativas das autarquias do código administrativo
de Marcello Caetano. E foram estes que, de forma cabralista, os vértices
concentracionários dos vários núcleos de centralização democrática, semearam os
novos regedores da velha senhora do centralismo estadualista.
Uma criação pombalista,
sucessivamente cabralista, fontista, afonsista, salazarista, soarista e
cavaquista. Apesar da revolução do sufrágio universal (passámos de
1,7 milhões de recenseados a 6 milhões em meses). Apesar da euforia do fim
da guerra. Apesar do salário mínimo. Da democratização da educação e do
serviço nacional de saúde. Apesar dos bons sinais, continua a pesar o lastro
inquisitorial, a arte de furtar, o despotismo ministerial, o seu
bastardo, a centralização, nomeadamente da partidocracia.
A
administração do país pelo país
Continua por cumprir o
sonho de Herculano, a administração do país pelo país... a realização
material, palpável, efetiva da liberdade na sua plenitude. Porque, para
obter este resultado é necessário começar pelo princípio; é necessário que a
vida pública renasça. Importa, pois, que o país da realidade, o país
dos casais, das aldeias, das cidades, das províncias acabe com o país nominal,
inventado nas secretarias, nos quartéis, nos clubes, nos jornais, e constituído
pelas diversas camadas de funcionalismo que quer e há de ser.
Estas ervas daninhas
continuam a ameaçar um regime que pode passar de uma democracia sem povo ao
despotismo dos césares de multidões. Infelizmente, já há sinais de evidências
de como importantes políticos profissionais continuam meros feitores dos ricos,
quando não capatazes que nos chicoteiam pelo imposto. E temos políticos que
continuam os precários definitivos a quem são serviço em sucessivas quintas, ou
plataformas giratórias de grupos clandestinos que continuam a privatizar o
público, em nome da compra do poder.
A
necessária história dos vencidos
Estamos muito
mal-habituados pelas balizas daquilo que são as memórias da história dos
vencedores. Isto é, dos reis, dos chefes de Estado, dos ministros, dos líderes
políticos e dos escritores consagrados. Raramente as memórias da história
dos vencidos passam as barreiras do publicável, dos desempregados
políticos, dos mal-amados e dos humilhados. Dos que não venceram com um cargo
ou uma comenda. Quando muitos destes não subiram porque não quiseram ceder à
hierarquia feudal das honrarias. Porque só quiseram ser aquilo que
conquistaram. E não aquilo que lhes queriam dar, mas para depois cobrarem.