segunda-feira, 26 de setembro de 2016

II Da Tirania


Da Tirania

Definir ditaduras em Portugal, onde a avenida da Liberdade, a que, muito bem, começa nos Restauradores, mas é interrompida pela estátua de um déspota, inaugurada solenemente, já em ditadura, no século XX, pode parecer um paradoxo. Sobretudo, neste nosso tempo, em que surgiu, pela primeira vez, um papa dos jesuítas, que certamente não desconhece que Sebastião José autorizou a Inquisição a queimar o Padre Gabriel Malagrida

Da marquesa de Alorna
Eu prefiro saudar a Marquesa de Alorna, agente em Portugal dos vendeianos, fundadora da Sociedade da Rosa, em que participava Bocage. Neste nosso tempo em que não podemos esquecer o massacre de cinco mil habitantes da Trafaria, aldeia feita fogueira, ateada pelo agente de Pombal, Pina Manique.

Da razão de Estado
Sobre o déspota apenas continuo a seguir o perfil que dele traçaram o maçon Camilo Castelo Branco e o republicano Guerra Junqueiro. Infelizmente, grande parte da literatura de justificação de liberais, republicanos e muitos maçons, contina a desculpabilizar Sebastião José, considerando que os fins por ele prosseguidos justificaram os meios por ele usados.

... ao terrorismo de Estado
Tudo em nome da clássica razão de Estado que mais não é do que um terrorismo de Estado, a coberto do terrorismo da pretensa razão. Quase como certos patriotas conservadores que desresponsabilizam Salazar em nome de um pretenso bem comum.

O reformador e o ditador-filósofo
Até aqui nesta minha cidade natal se invoca Pombal por causa da reforma da universidade. Tal como se venera um dos seus alunos de Santa Comba, porque ele gostava que os alcunhassem como o ditador filósofo.

Dos amigos dos meus inimigos
Como se o despotismo, só por dizer iluminado, ou se invocar como esclarecido, deixe de ser despotismo. Os inimigos dos meus inimigos … não é por isso que passam a ser meus amigos. Até porque nos podemos enganar quanto às inimizades.

Livro único, método único, livros proibidos
Aqui em Coimbra, devo recordar que foi Pombal quem consagrou infelizmente o conceito de livro único, de método único e de livros proibidos. Paradoxalmente até proibiu, como monarcómacos e republicanos, os próprios autores que estiveram na base da restauração de 1640, como João Pinto Ribeiro e Francisco Velasco Gouveia.

Monarcómacos e republicanos
Argumentava que eles copiavam as teorias neotomistas dos jesuítas da neo-escolástica, como o grande professor da Rua Sofia, o jesuíta e espanhol Francisco Suárez, que aqui publicou uma das mais célebres obras políticas de todos os tempos, o De Legibus, de 1612.

João Pinto Ribeiro e Francisco Velasco Gouveia
Chegou a altura de a democracia portuguesa se libertar de certa memória despótica, maquiavélica e de razão de Estado. Chegou até a hora de violarmos o decretino pombalista que continua em vigor. Porque nunca mais publicámos João Pinto Ribeiro e Francisco Velasco Gouveia.

Más memórias do 28 de Maio
Por isso é que não gostamos de ler que a maioria dos golpistas do 28 de Maio era de republicanos e o comité revolucionário de Lisboa era praticamente do Grande Oriente Lusitano Unido.

Como não queremos compreender que o pior símbolo do Estado Novo, a polícia política, com a tortura e a bufaria, teve como fundador e conformador o capitão Lourenço, republicano e maçom.

Ignorância, fanatismo e tirania
A tolerância não nos impõe o não esquecimento face aos três tradicionais inimigos da liberdade: a ignorância, o fanatismo e a tirania. Como nos deve evitar a ajudar a continuar a confusão entre os honestos e os corruptos.

Da corrupção
Porque continua a ser corrupção quando os honestos escolhem colaboradores corruptos e governam pela corrupção, dizendo, provando e manifestando que são pessoalmente incorruptíveis. São como os desonestos que escolhem colaboradores honestos.

Estatismo, despotismo ministerial e centralização uniformista
Pombal e Salazar são três coisas: estatismo, despotismo ministerial e centralização uniformista. Um plano único para a construção da cidade, de preferência depois de um terramoto, com a edificação dos próprios nichos onde a criatividade futura poderá pôr estátuas.

Um foi pré-romântico. Outro foi antirromântico. Ambos foram engenheiros sem sonhos. Glaciares, metódicos, fugazes. Ambos eram dotados de uma psicologia totalmente contrária à do homem comum português. Como se fossem efetivamente estranhos e estrangeiros, à maneira dos ocupantes que nos dizem trazer uma bela ordem exógena. Seja Junot ou a Troika.

Ambos usaram e abusaram de colaboracionistas e da técnica da bufaria. Como o vai repetir el-rei Junot com o Loison a mandar-nos para o maneta. Ambos assentaram no mesmo lastro inquisitorial que, em nome da luz, nos trouxeram as trevas da servidão voluntária e de uma pretensa revolução, feita de cima para baixo, não faltando sequer o requinte da subversão a partir do próprio aparelho de Estado, como o tentou a fase salazarenta do PREC.

O despotismo gosta de ser louvaminhado como monopólio da inteligência, afinado pelo método dogmático do catecismo, da propaganda pela obra público e pelo ferrete do SS, do serviço e do sacrifício.

Por erro, por manha ou por engano, o posterior liberalismo, temendo a nebulosa do congreganismo do clero e a oligarquia da nobreza, levou a que se fizesse a literatura de justificação de um corrupto que, a partir do vértice do Estado, se alavancou com títulos, donatorias e rendas, nomeando uma rede de parentes e clientes para o controlo do país, não faltando o recurso aos soberanos inquisidores.

Infelizmente, por falta de autocrítica, certa maçonaria liberal e adogmática, não tem denunciado com suficiente vigor o déspota. Preferiu a tética à estratégia, aproveitando o centenário de 1882.

Um neodogmatismo pretensamente antidogmático
E assim se gerou um neodgmatismo pretensamente antidogmático, admitindo-se desta forma uma via antiliberal para o liberalismo. Uma falácia maquiavélica acabou por beneficiar o infrator em cheio, isto é, o maior déspota do nosso século XX, Oliveira Salazar.

O mestre de propaganda de uma pretensa república de catedráticos, em nome de quem se foi mesmo catedráticos nunca se doutorou, confrontando o paradigma de um cursus honorum.


As malhas que a propaganda foi tecendo
As malhas que a propaganda foi tecendo, ainda nos têm conturbado a luz, pelas teias de aranha dos absolutismos de facto. Exatamente os mesmos que não deixaram que o nosso Primeiro de Dezembro de 1640 se tivesse volvido na primeira revolução democrática do espaço atlântico, antes das revoluções inglesa, norte-americana e francesa.

Rolo compressor
Sempre em nome da atração pelo vértice da centralização e do estadualismo uniformista. O mesmo rolo compressor que não nos deixou desenvolver as sementes da primeira revolução pós-feudal da Europa, a de 1383-1385, entre Aljubarrota de São Jorge, e as Cortes de Coimbra de João das Regras e do princípio democrático do QOT (quod omnis tangit, o que a todos diz respeito, por todos deve ser respeitado.

Fatores democráticos da formação de Portugal
Aquela fibra multissecular dos fatores democráticos da formação de Portugal, segundo Jaime Cortesão, de Ançã. Sem os quais não pode frutificar aquilo que Alexandre Herculano qualificou como a vontade de sermos independentes, o somos independentes apenas porque o queremos.

Afonso Costa não teve tempo para ser déspota. Foi denunciado pelos próprios republicanos. Vasco Gonçalves não teve espaço para ser déspota. Foi corrido pelo próprio MFA, desde o Grupo dos Nove a Otelo.

O problema não está em voltar a haver gente que queira ser déspota. Haverá sempre. O problema não está em voltar a haver gente que invoque a necessidade de um déspota. Haverá sempre. Haverá sempre quem alcançando o poder ilimitado, se assuma como boa pessoa, com as melhores ideias do seu próprio tempo, com o apoio de uma legião de escribas que o louvaminho e de uma sociologia com vontade da servidão voluntária.

O abuso do poder
Como avisava o maçom Montesquieu: qualquer homem que tenha o poder, tende sempre a abusar do poder que detenha, invocando, quase sempre bons princípios. Até poderá em nome do bem dar aos adversários uns safanões a tempo, como Salazar dizia dos serviços da PIDE.

A culpa não pode morrer solteira
O pior é que esse homem pode até mandar matar os adversários. E matar mesmo. Como o fez Pombal. Como o fez a Pide ao chefe da oposição em 1965, o general Humberto Delgado, sem dúvida, um dos mais abjetos crimes comuns da ditadura, felizmente derrubada em 1974. A culpa, também para as ditaduras, não pode morrer solteira. Não, não estou a denunciar os que depois de 1974 voltaram a ser adesivos e vira-casacas. Estes ao menos mostram o periscópio de ministros, secretários de estado e subsecretários do regime do partido único.

Os arrependidos são bemvindos se vierem siceramente. O problema é se continuarem pequenos déspotas nas zonas reservadas do respetivo micro-autoritarismo subestatla, candidatos a sucessores do déspota máximo, em nome dos ultras, contra a possibilidade de transição em primavera.

Os que foram autores de antigas doutrinas sobre a traição à pátria, transformada em jurisprudência dos tribunais plenários. Ou os criadores dos campos de concentração em arquipélago. Ou os autores dos decretos que expulsaram colegas da função pública, só porque estes, no lugar próprio, do conselho escolar, verberaram a atitude do senhor ministro da educação nacional.

Há muitos deles que continuam a ter procissões de louvameinheirismo, em muitas zonas da nossa democracia, só porque alguns oportunistas os convidam, nomeiam, procurando uma aliança que consiga expulsar a competência do Estado racional-normativo, em nome da fidelidade e da consequente razão do neofeudalismo e do patronato.

A que, disfarçando o terrorismo de Estado em nome do terrorismo da razão, nos continua a amarfanhar. Só porque quem cala nada diz, embora pareça consentir.

O Estado terrorista
Porque o Estado tanto é terrorista quando se volta para o exterior quanto, voltado para o interior, exerce a colonização ou a repressão. O que precisa sempre de inventar inimigos. Porque enquanto houver inimigos a revolução continua. Basta espreitarmos alguns escritos de certa bibliografia de encómios, com citações e nomeações mútuas. Assim compreenderemos a revolta dos que consideram que a tirania é a própria suspensão da política e o regresso à violência doméstica do paterfamilias, a quem se atribui o ius vitae necisque, o direito de vida e de morte sobre os membros da casa. Casa que em latim se diz domus e onde o poder absolutos do dominus, donde veio o nosso dono. Casa que em grego se diz oikos, e onde o dono se chama oikos despote, donde veio o déspota.

Inventámos a política para deixarmos de ter um dono
Porque nos esquecemos que apenas inventámos a política, enquanto sinónimo de democracia e de república, precisamente, para deixarmos de ter um dono na praça pública, no espaço que vai além do doméstico. Como dizia Plínio, dirigindo-se a Trajano.

O Estado de exceção
Hoje o déspota, como dizia Walter Benjamin, é o que decide em estado de exceção. O aparente provisório que se torna definitivo, nuns provisórios definitivos e definitivamente provisórios, como as ditaduras das finanças. Os que só caem da cadeira, ou na banheira, ou a serem desterrados para Pombal, estando ambos podres.

Usurpadores do nome povo
Entretanto, vão usurpando o nome de povo. Por exemplo, quando adotam em plebiscito, uma constituição, onde as abstenções contaram como votos a favor. Ou quando imediatamente a suspendem, por decreto do ordinário, em nome de circunstâncias extraordinárias. Por exemplo, em nome de um parágrafo único que permitia a suspensão do corpo do artigo sobre direitos, liberdades e garantias da mesma falsa constituição de 1933.

Estado de legalidade não é Estado de direito
E até levam à confusão entre o Estado de Legalidade e a não assimilada ideia de Estado de Direito. Num regime onde até se protegiam as medidas de segurança como legalidade.

Ou se as mais ferozes repressões policiescas se reduziam a relatórios perfeitamente legais e hierárquicos. O dura lex, sed lex, como se lê no palácio dito da justiça, aqui edificado pela ditadura, não coincide com a justitia. Porque o regulamento e a lei são inferiores ao direito e até o direito está dependente da justiça. Qousque tandem Catilianam abutere patientia nostra?

Da tortura
Não nos esqueçamos até daquilo que Raymond Aron como a difícil herança de qualquer guerra colonial, de subversão ou de contrassubversão. A potência dominante, ocupante ou colonizadora, aquela onde se situa a sede da soberania, ou metrópole, deixa que os respetivoa aparelhos militares, administrativos e de segurança, bem como as milícias militarizadas que eles favoreceram, usem da tortura face ao inimigo, dito revolução, ou libertação, tentando evitar que ele se sinta como peixe na água, entre a população civil.

Do terrorismo
Em contrapartida, os ditos bandoleiros, ou bandidos armados, a quem nunca se declara guerra formal, usam do terrorismo, em nome da luta pela libertação. Se todas as guerras são inconscientes pelos seus mortos, a mais dramática das formas de guerra civil ainda é mais especialmente inconsciente. Porque quase todos têm um irmão-inimigo, onde eu sou soldado e ele é guerrilheiros. Uma guerra onde, afinal, fomos ambos peões do xadrez de uma mais ampla guerra dita fria, mas com secções de guerra quente que foram meras guerras por procuração de duas superpotências cobardes. Guerras que, aliás, continuaram e até se agravaram depois da retirada das forças portuguesas do teatro de operações.

Pombal e Salazar são históricos tiranos. Déspotas que cresceram sobre a ignorância e o fanatismo. Tenho de Carvalho e Melo ideia contrária à dos jacobinos e salazarentos. Subscrevo Camilo Castelo Branco e Guerra Junqueiro.

O massacre da Vendeia veio depois, entre 1793 e 1796. O Terror, ou o terrorismo de Estado, também veio depois. Eu sou vendeiano, como a Marquesa de Alorna. O massacre da Vendeia em Portugal é anterior e bem mais rápido. Foi o da Trafaria. Levado a cabo por Sebastião José de Carvalho e Melo. O déspota que interrompe a nossa Avenida da Liberdade. Cinco mil vidas numa só fogueira. "Um brutamontes raciocinando claro. Falta-lhe o génio, o dom de sentir, nobreza heroica, vida profunda, - humanidade, em suma. Máquina apenas. Não criou, produziu. A criação vem do amor, a génese é divina. Criar é amar. ... Só dura o que vive. Uma raiz esteia mais  que um alicerce" (Guerra Junqueiro)

"Pombal em três dias, num deserto quis formar um bosque. Como? Plantando traves. Adubou-as com mortos e regou-as com sangue. Apodreceram melhor. "(Guerra Junqueiro)

Os liberais não podem desculpar Pombal. Os conservadores não podem desculpar Salazar. Devem relembrar a Marques de Alorna, do partido dos Távoras. O atual papa, do partido dos jesuítas. E defender o povo massacrado, da Trafaria. Pina Manique passa-se sempre para a Viradeira, mas eu não esqueço o carrasco, mesmo com a criação da Casa Pia. E os primeiros chefes da polícia política do salazarismo vieram do republicanismo.

Basta atentarem na biografia de Agostinho Lourenço (desta, não consta tudo...) As constituições servem para transformar as violências das revoluções em paz pelo direito, mas conservam o dever ser da subversão da justiça.

A estrela do norte da política é a justiça. Que é o mais político dos valores, quando dá a cada um o que é seu, exigindo, de cada um, conforme as suas possibilidades, para dar a cada um conforme as suas necessidades. No meio, há sempre imposto. A justiça é o velho e novo nome da igualdade. Que implica tratar o desigual, desigualmente. O problema sempre foi o mesmo: o critério para aferição das desigualdades depende das ideologias, programas e doutrinas.

Só quando o homem for anjo é que deixará de haver política, mesmo quando alguns querem ser anjos e, fazendo anjinhos, se tornam bestas. Eu nunca fui revolucionário. Continuo a subscrever que a revolta é mais importante que a revolução. Porque pensar é dizer não. Até à revolução.

Há quem sempre tenha dito que há atos de violência menos violentos que os próprios estados de violência. Basta consultarmos a literatura de justificação da autodefesa, com que se costuma ornar o terrorismo, incluindo o terrorismo de Estado. O recente vídeo de uma conhecida banda, que aqui não divulgo, é manifesto quanto à insinuação do uso da violência como forma de luta política, com pistolas reais, tendo, como alvos, políticos presentes e passados, num fundo onde aparecem as principais instituições constitucionais e um templo. O título é elucidativo e pouco simbólico: "pelo meu relógio são horas de matar".

Um povo de magnicidas
É antidemocrático não se banir para sempre o apelo ao magnicídio, como aconteceu com o regicídio (1908), o assassinato de Sidónio (1918), a Noite Sangrenta (1921) e o assassinato de Delgado (1965). Quem com a pistola brinca, pode acabar por matar.

Sobretudo, num povo que foi dos mais magnicidas do mundo no século XX. Quando os rotativos do situacionismo do dito arco do governo dissertam sobre a apatia, sem autocrítica, dizendo que ela é melhor do que o voto nas frentes nacionais e nas esquerdas revolucionárias, apenas digo que está tudo dito por quem nem ao espelho se olha.

Não há machado estadual que deva cortar a liberdade de expressão de pensamento de um qualquer cidadão, tenha ele a opinião que tiver. Um inimigo da democracia pode proclamar o que pensa. Um traidor à pátria também o pode expressar. Até Deus se deve discutir, bem como a extremada crença que é o ateísmo.

Os diabos e os deuses estão além do pensamento
Eu nunca acredito muito no diabo, quando ele define as crenças dos que se assumem como partidários do divino. Ou vice-versa. É que os diabos e os deuses estão além do pensamento. Não precisam dele para serem o que são. Só os humanos são imperfeitos. Porque caem e se levantam. Sonhando para que a obra nasça. Os inspiradores, regulamentadores e polícias do pensamento criam teias onde eles próprios se enredam, queimando-se na fogueira que atearam, para se queimarem os outros. O Estado não pode ter capacidade decretina para, de forma ordinária, fixar conjunturalmente quem são os seus inimigos, estabelecendo definições dos mesmos.

Um país unânime numa opinião ou num hábito seria gado
Estou farto dos filósofos da traição, dos teóricos do anticristo, dos caça-fascistas, dos detetores de pedreiros ou dos especialistas em criptocomunismo. Um país unânime numa opinião ou num hábito, não seria país, seria gado. Tivemos moscas, tivemos formigas, tivemos bufos. E até alguns vigilantes revolucionários passaram a polícias de defesa do Estado. São diretamente proporcionais aos adesivos e vira-casacas.

Que Deus escreva direito por linhas tortas
Quando sua excelência, do despotismo ministerial, diz que quem não é por mim é contra mim, ou que quem não é contra mim está a favor de mim, eu posso desobedecer a esse monopólio da palavra pública, a que diz tudo no Estado, tudo pelo Estado, nada contra o Estado, sempre a bem da Nação. Prefiro que Deus escreva direito por linhas tortas, porque a lealdade pode ser feita em oposição, sendo, ortodoxamente, heterodoxo. Com Saúde e Fraternidade e os Melhores Cumprimentos. Nada contra a Nação. Tudo pela Humanidade.

Uma burguesia corrupta
Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não discriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem caráter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira a falsificação, da violência ao roubo, donde provem que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro. (Guerra Junqueiro)

Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo cético e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos atos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar. (Guerra Junqueiro)

Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta (Guerra Junqueiro)

Salazar, numa entrevista a António Ferro, confessou que gostava de ser primeiro-ministro de um rei absoluto. Por outras palavras: que gostava de ter sido um João Franco de um D. Carlos que não tivesse sido o último e que pudesse fazer regressar a nossa monarquia aos tempos de um Piedoso, com o estabelecimento de uma nova inquisição, instaurando um paternalismo e um despotismo ministerial.

Apenas conseguiu atingir a dimensão do manholas, entrando no comboio da ditadura dos republicanos, quando a partir da tecnocracia de uma ditadura das finanças, saltou para a cabeça das locomotivas. Por outras palavras a dita revolução nacional não passou de uma das nossas habituais pós-revoluções que duram. Até se constituiu, a posteriori, um partido único, a partir de um decreto do conselho de ministros, à imagem e semelhança do primeiro partido católico, o CCP, Centro Católico Português, instaurado em 1917 por resolução da Conferência Episcopal Portuguesa. Com algumas semelhanças dos atuais partidos dominantes, também eles com o privilégio criativo de serem chamados ao governo provisório por Spínola e pelo MFA, no regime de salvação nacional, entre os cravos e o monóculo.

Porque o PS e o PPD não passavam de grupos de amigos de Mário Soares e de Francisco Sá carneiro. E o PCP não passava de uma ordem religioso-militar com três mil militantes, tantos quanto tinha, então, a esquerda ML. Mas foram os três grandes, com o CDS só no Conselho de Estado que então repartiram a nomeação de governadores civis e de presidentes das comissões administrativas das autarquias do código administrativo de Marcello Caetano. E foram estes que, de forma cabralista, os vértices concentracionários dos vários núcleos de centralização democrática, semearam os novos regedores da velha senhora do centralismo estadualista.

Uma criação pombalista, sucessivamente cabralista, fontista, afonsista, salazarista, soarista e cavaquista. Apesar da revolução do sufrágio universal (passámos de 1,7 milhões de recenseados a 6 milhões em meses). Apesar da euforia do fim da guerra. Apesar do salário mínimo. Da democratização da educação e do serviço nacional de saúde. Apesar dos bons sinais, continua a pesar o lastro inquisitorial, a arte de furtar, o despotismo ministerial, o seu bastardo, a centralização, nomeadamente da partidocracia.

A administração do país pelo país
Continua por cumprir o sonho de Herculano, a administração do país pelo país... a realização material, palpável, efetiva da liberdade na sua plenitude. Porque, para obter este resultado é necessário começar pelo princípio; é necessário que a vida pública renasça. Importa, pois, que o país da realidade, o país dos casais, das aldeias, das cidades, das províncias acabe com o país nominal, inventado nas secretarias, nos quartéis, nos clubes, nos jornais, e constituído pelas diversas camadas de funcionalismo que quer e há de ser.

Estas ervas daninhas continuam a ameaçar um regime que pode passar de uma democracia sem povo ao despotismo dos césares de multidões. Infelizmente, já há sinais de evidências de como importantes políticos profissionais continuam meros feitores dos ricos, quando não capatazes que nos chicoteiam pelo imposto. E temos políticos que continuam os precários definitivos a quem são serviço em sucessivas quintas, ou plataformas giratórias de grupos clandestinos que continuam a privatizar o público, em nome da compra do poder.

A necessária história dos vencidos
Estamos muito mal-habituados pelas balizas daquilo que são as memórias da história dos vencedores. Isto é, dos reis, dos chefes de Estado, dos ministros, dos líderes políticos e dos escritores consagrados. Raramente as memórias da história dos vencidos passam as barreiras do publicável, dos desempregados políticos, dos mal-amados e dos humilhados. Dos que não venceram com um cargo ou uma comenda. Quando muitos destes não subiram porque não quiseram ceder à hierarquia feudal das honrarias. Porque só quiseram ser aquilo que conquistaram. E não aquilo que lhes queriam dar, mas para depois cobrarem.